Quem sou eu
- Felipe Pena
- Escritor, psicólogo, jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Literatura pela PUC-Rio, Pós-Doutor em Semiologia pela Université de Paris/Sorbonne III e ignorante por conta própria. Autor de doze livros, entre eles três romances, todos publicados pela ed. Record. Site: www.felipepena.com
terça-feira, 21 de agosto de 2012
terça-feira, 14 de agosto de 2012
segunda-feira, 6 de agosto de 2012
O amor são duas solidões que se protegem
Ela ligou o rádio. O medo de ter medo de ter medo. Nina adorava o Renato Russo. Ouvia
o dia inteiro, intercalando com a poesia do Rimbaud, os romances
latino-americanos e a novela da Globo. Podia ser um recado personalizado se eu
fosse capaz de entender. Bastava notar o aumento do volume no meio da música,
sempre na mesma parte: o salva-vidas não
está lá porque não temos.
Não notei. O salva-vidas não estava lá.
No primeiro ano, grudamos o couro um no outro
até fazer ferida. Tínhamos que recuperar o tempo perdido. Outra música do
Renato, eu sei. Mas nessa época ouvíamos Radiohead, Los Hermanos, Beatles e até
nos divertíamos com a Lady Gaga, dançando seminus na varanda só pra
escandalizar os vizinhos.
Nas noites calmas, as peel sessions de P J Harvey e o remix
do Yolatengo disputavam espaço com o velho Miles Davis. Bebíamos o Chateau Laplanche no copo de geleia
mesmo, mas só após a decantação.
- Deixa o vinho respirar, meu amor.
Os finais de semana eram todos prolongados.
Nina chegava lá em casa na quinta e só ia embora na terça. Vida de casado, eu
achava. E continuei achando. Ela separou metade das gavetas do closet,
transferiu minhas camisas para o quarto de hóspedes e hospedou os sapatos no
lugar da coleção de fitas VHS, devidamente catalogadas no armário da
biblioteca. Bora digitalizar esse
negócio, Antonio!
Concordei.
Nem o que havia de mais perturbador na minha
rotina intelecto-urbana era um estorvo. Pelo contrário. Eu gostava dos jogos infantis,
das interrupções no meu trabalho, do raciocínio perdido. Há uma certa sedução
na ingenuidade. Ou na crença na ingenuidade.
Nina preparava pequenas surpresas em
efemérides do calendário judaico-comercial-cristão. Na Páscoa, separou cascas
de ovos e pintou-as delicadamente como se fossem obras astecas, deixando-as em
um cesto na porta do meu escritório. No Natal, fez um imenso cartão em forma de
mosaico com fotos de nossa viagem pela Europa. No meu aniversário, construiu
uma bandeja para o notebook, acompanhada de uma proteção de tela com o rosto do
incrível Hulk. Você é meu Bruce Benner,
dizia, estimulando raios gama por métodos pouco ortodoxos.
E voltava pra minha biblioteca, tentando
sorver tudo que encontrava nas prateleiras. Literatura russa, sociologia
americana, história francesa, filosofia alemã. Só parava pra ver a novela e o
paredão do Big Brother.
Ela conseguia fazer essa mistura entre versos
alexandrinos e cantigas de ninar (incluindo o trocadilho). Como se a Silvia
Plath e uma líder de torcida habitassem o mesmo corpo. Num dia líamos A superação da metafísica, do Heidegger.
No outro, dançávamos o Ilariê da
Xuxa. E, porra, eu morro de vergonha desse alemão pós-niilista. Prefiro o
concretismo da loura, embora jamais tivesse tempo de acompanhar sua pedagogia.
Além de não ter nenhum tesão nas paquitas.
Meu negócio é a Nina mesmo.
Seria injusto dizer que metade das minhas
crônicas foi inspirada na sua transcendência eslavo-tupiniquim-televisiva. Era
muito mais que isso. Todas as crônicas, todos os livros, todos os verbos,
advérbios, adjetivos, concordâncias e discordâncias da minha lexicografia
primária foram criados pelo dicionário de Nina. Tudo estava nela. Sem exagero.
Podem acreditar: não tô pagando paixão. Apenas consignando um fato concreto,
lúcido, racional.
Ainda assim, não fui capaz de perceber sua
angústia. Não consegui dançar nas entrelinhas. Não olhei pra cima. Não cavei a
terra. Não joguei as cartas do tarô. Não li o poema do Carpinejar.
Descobre-se um amor na iminência de perdê-lo.
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