O amor não discute, vai embora
Ela o manipulava utilizando a própria indignação como estratégia. E não precisava se colocar no papel de vítima. Bastava fazê-lo perceber os julgamentos injustos, a paranóia, a insegurança. Mostrava-se plena, absoluta. Uma confiança quase religiosa perpassava seu sorriso meio de lado enquanto falava. Mas não era tão confiante assim.
Só pareceu ter a situação sob controle até reparar nas estantes vazias da sala e nos caixotes com livros perto do bar, onde, no lugar das garrafas, jaziam pedaços de jornal velho. Havia candelabros cobertos com plástico e quadros embrulhados com papelão. Duas malas cheias estavam empilhadas ao lado da porta, junto com alguns objetos que ainda não haviam sido embalados.
Sentiu o golpe, mas fez-se de desentendida. Aquele idiota recalcado estava fugindo! Fugindo de verdade! Fisicamente. Geograficamente. Covarde filho-da-puta! Por que ficar de conversinha se já estava decidido a partir? Teve vontade de ser mais violenta do que ele, e não apenas de forma verbal. Precisava mordê-lo, arranhá-lo, bater naquela cara bonita. Como ele era bonito! Agora ainda mais, como um soneto incompleto, uma escultura neoclássica sem os membros, algo inacabado e, por ser inacabado, muito mais bonito.
Não tinha um rosto geométrico. Era masculamente desproporcional: os olhos grandes, as maçãs salientes, o queixo pontiagudo e rachado, a barba meio grisalha com falhas visíveis em ambos os lados. E os sulcos laterais denunciando a idade, o detalhe preferido dela. Um rosto perfeito de um homem perfeito. Tão perfeito que não o veria mais.
- Vou voltar pra casa. Não posso mais ficar aqui. Meu voo está marcado pra depois de amanhã.
Então era o fim. Antes mesmo do começo. O fim. O que poderia fazer? Segurá-lo pelo pescoço? Encenar um escândalo? Suplicar para que ficasse? Dizer: eu te amo, não me abandone! Isso seria pior do que perdê-lo. Porque perderia a fleuma, a postura altiva, a verve crítica que o conquistara. E, nesse caso, o perderia de qualquer jeito.
- Não há encantamento na hora da partida. – ele disse. E ela ficou em silêncio.
O jogo de aforismos de repente perdera o sentido. Não conseguia elaborar uma resposta à altura, uma frase de efeito, algo genial que a trouxesse de volta ao controle. Pela primeira vez, não sentia qualquer prazer na superioridade intelectual. Naquele instante, gostaria de ser uma dona de casa siciliana, com as ancas largas, a lasanha no forno e as crianças na barra da saia.
Queria não ter pensado na carreira, no mundo, na sociedade capitalista. Queria não ter se filiado a um partido de esquerda. Queria não ter brigado com a família. Queria não ter lido Nietzsche, Foucault, Marx, Freud, Deleuze, Lacan. Queria não ter ombros largos. Queria não ter opinião.
Mas tinha. E era estranho pensar como tudo que representava tanto valor poucos minutos antes agora não passava de névoa, espuma de chuveiro, pó.
Deslizou o corpo pelo sofá, segurando no braço, para não cair. Olhou reto, certeira, nos olhos dele. Uma lágrima insistia em romper o bloqueio emocional, mas ela a segurou, refez o dique. Enxugou o canto, discretamente, dilatando a pupila para disfarçar. Ele se aproximou, curvou o corpo, tentou beijá-la na testa, mas ela o afastou.
Beijo na testa era pior do que separação.
Quem sou eu
- Felipe Pena
- Escritor, psicólogo, jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Literatura pela PUC-Rio, Pós-Doutor em Semiologia pela Université de Paris/Sorbonne III e ignorante por conta própria. Autor de doze livros, entre eles três romances, todos publicados pela ed. Record. Site: www.felipepena.com
sexta-feira, 28 de maio de 2010
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12 comentários:
Seu livro:O Marido mora ao lado" é espetacular.
Abçossss
me identifiquei um pouco com a mulher, otima cronica
obrigado. Fico feliz. A recompensa do autor é o comentário do leitor. Abraço, Felipe
Texto muitooo bom,me fez reviver uma cena(lálálálá)
Nicole e Pastoriza... personagens marcantes. diálogos e história provocantes.
Gostei do texto. Parabéns!
Nome: maíra barbosa
Telefone: 33 3764 5021
E-mail: mairabarbosa43@yahoo.com.br
Cidade: leme do pradoo
Estado: MG
Mensagem: Tenho 18 anos, sou estudante de Ciências Econômicas, apaixonada por ciência, história, direito, literatura, computação, economia e tecnologia. Eu gostaria de epedir que me enviassem títulos concedidos como cortesia, gosto muito de ler e ficaria muito agradecida se me ajudarem. Meu endereço: Nome: Maíra Barbosa Rua Rafael de Souza, Acauã, Leme do Prado-MG Cep 39655-000
Um texto é belo e perfeito não pelas construções, coerência ou frases de efeito. Mas sim pela possibilidade de ser real - a tal verossimilhança para os eruditos, mas para mim o típico aperto no peito de quem já sofreu por amor um dia.
Parabéns, Felipe!
Abraços saudosos de Belém do Pará e dos estudantes da Unama.
Bommm...muito bom.
Vc constrói frases belíssimas, Felipe. Gostei especialmente de: "beijo na testa é pior que separação".
Um abraço, Adriana.
Adorei o blog!
Receber ou dar um beijo na testa é a certeza de que não há mais argumentos possíveis.....mt bom!!!! Um abraço, Luciana Hendrich
Essa ultima frase sim foi uma frase de efeito! Adorei!
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