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Escritor, psicólogo, jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Literatura pela PUC-Rio, Pós-Doutor em Semiologia pela Université de Paris/Sorbonne III e ignorante por conta própria. Autor de doze livros, entre eles três romances, todos publicados pela ed. Record. Site: www.felipepena.com

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Crônica de Domingo no Jornal do Brasil

As últimas leitoras do jornal

Toda leitora é sentimental. Toda leitora é cândida. Toda leitora espera pela última lágrima, pelo amor impossível e pelo clichê, mesmo que de forma inconsciente. E quem não se encaixa nessa regra não é leitora, é intelectual. Então, volte para o James Joyce ou ligue no Discovery.

Berenice abriu o jornal na página sete. Os olhos bateram direto na crônica de Antonio Pastoriza, que ocupava a parte superior, bem acima do artigo do presidente da ordem dos advogados, cujo tema, como de costume, versava sobre a urgente necessidade de reformas constitucionais. Para a maioria dos leitores, a disposição dos textos denunciava uma certa vocação literária na editoria de opinião, priorizando o ritmo leve e despretensioso da crônica sobre o tom solene e positivista do artigo.

Poderia parecer que o jornal assumia a completa incapacidade do jornalismo em apresentar os fatos, reproduzir a realidade, dizer a verdade. E, então, falaríamos em redundância. Mas, para Berenice, jornalista experiente e repórter da principal rádio do país, havia muito que estas questões já estavam resolvidas. Sabia que o máximo que podia apresentar era um efeito sobre o real, a narrativa possível, a versão.

Suas reportagens construíam socialmente os acontecimentos. Não podia acreditar na isenção, na neutralidade, no paradigma do espelho, cuja crença era de que o jornalismo refletia a realidade. Seus chefes diziam que ela precisava ser objetiva, mas Berenice insistia na subjetividade, na inferência, nos clichês que a estabilizavam diante de um mundo cujas leituras eram tão perturbadoras.

E Pastoriza era muito perturbador. Aquele texto a inquietava, desesperava, reconstruía seus próprios clichês e lágrimas. Era uma crônica escrita para ela, com as digitais dela, a história dela. As quatro letras do apelido, a colcha roubada, as garrafas vazias. Pormenores que só ela poderia conhecer. Só ela poderia (re)conhecer.

Já Nicole, a outra leitora, tinha formação e informação diferentes. Nos tempos em que frequentava o curso de nutrição no interior de Minas, o jornal parecia um desperdício de tempo. Não só o jornal, mas qualquer tipo de texto, impresso ou manuscrito, amador ou profissional. A única leitura possível eram as fotocópias dos compêndios de bioquímica, traficados pelos veteranos da faculdade. E se a obrigação acadêmica já era um estorvo, qualquer outra letrinha no papel tornava-se uma tortura. Nunca tivera prazer algum em ler qualquer coisa. Simples assim. Ponto final, fecha parágrafo e vamos direto pra internet, pra TV a cabo ou pro salão fazer as unhas.

O que mudava naquela tarde outonal não era o repentino despertar para a literatura. Muito menos o reconhecimento de um talento extraordinário na crônica de Pastoriza, ou, quem sabe, uma visão mediúnica desencoberta pela palavra. Não, nada disso. Nicole tinha motivos pessoais para abrir o jornal na página sete. Aquele texto fora escrito para ela, sobre ela, dedicado a ela. Estava ali, em cada letra, cada frase, cada espaço entre as frases, que só ela podia preencher.

2 comentários:

Jacinta disse...

Como disse Freud: o homem é constituído de emoção, sentimento. A Razão, se há, quando há, vem a posteriori. Somos movidos pelo que nos encanta, e o que nos "Espanta". Hoje fui ver a exposição de Anita Mafaltti, e fui às lagrimas quando ela escreve (não me lembro se a Mário de Andrade) que a a pintura dela já não era mas expressionista, Cubista,ou qualquer "ista" ou "ismo". Que, naquele momento, ela só pintava o que a encantava. E vemos a Simplicidade dos traços de sua pintura dando vida às pessoas simples do interior paulista e do Brasil. Anita nos ensina que a Beleza é simples. Ensinou-me, hoje, que toda escolha é, antes de mais nada, uma escolha afetiva, logo sentimental, no sentido mais nobre dessa palavra. Somos "animais sentimentais", Renato Russo já o disse, rs. Abraço.

Aline /B. disse...

E parece que a subjetividade e a inferência não é exclusividade de Berenice, né... rs*
Abraços.