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Escritor, psicólogo, jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Literatura pela PUC-Rio, Pós-Doutor em Semiologia pela Université de Paris/Sorbonne III e ignorante por conta própria. Autor de doze livros, entre eles três romances, todos publicados pela ed. Record. Site: www.felipepena.com

terça-feira, 26 de julho de 2011

O entretenimento como conceito de valor na literatura

Em recente polêmica envolvendo uma crítica da professora Beatriz Resende ao seu último livro, o escritor João Ximenes Braga desabafou: "Críticos de cinema e música entendem que há espectadores e ouvintes com desejos diversificados. Chegamos aos livros e, danou-se, os acadêmicos e certos críticos que sempre falam em ‘a literatura’ com artigo definido, como se houvesse um único cânone a ser seguido, não fazem cerimônia em dizer que o leitor que não os obedece é burro ou pouco exigente."


Braga pondera que, pela premissa da crítica brasileira, dificilmente haveria uma versão brasileira contemporânea de fenômenos de qualidade e popularidade como o inglês Nick Hornby e o americano David Sedaris. Segundo ele, certos críticos locais os matariam no nascedouro e trucidariam sua linguagem simples, pois negam a possibilidade de uma literatura que não seja dirigida a uma casta de leitores que habita uma torre de marfim.

Concordo com ele. É fácil perceber que grande parte da nossa ficção é elitista e pretensiosa. Os autores (estou generalizando de propósito) não se preocupam com o principal, que é contar uma história. Alguns livros nem história têm, limitando-se ao experimentalismo linguístico.

Isso não significa, no entanto, que não sejam boa literatura. Pelo contrário, alguns são obras de arte de relevante valor. Só não são acessíveis. Eu, por exemplo, leio esses autores, mas tenho doutorado em Literatura. Aliás, isso é parte do problema: a Academia e uma elite leitora convencionaram que só tem valor aquilo que está na elipse, que força o leitor a encontrar sentido onde poucos conseguem enxergar. Por essa premissa, o que é fácil de ler não tem valor literário. E quem discorda dela é taxado de superficial.

Para os doutores da Academia, entreter significa passar o tempo. É um termo pejorativo, aviltante, usado para diminuir uma obra. Mas não é o que ele significa para quem se envolve com um livro e não consegue largá-lo. Em literatura, entretenimento é sedução pela palavra escrita. É a capacidade de envolver o leitor, fazê-lo virar a página, emocioná-lo, transformá-lo.

Apesar da tão apregoada diversidade da prosa nacional, a crítica acadêmica dividiu-a em pólos antagônicos. Quem não é moderninho, é superficial. E ponto final. Essa é a generalização leviana que produz distorções, afasta leitores e joga sua névoa sobre o mundo literário.

Em um mea culpa corajoso, o crítico Tzvetan Todorov concluiu: “A história da literatura mostra bem: passa-se facilmente do formalismo ao niilismo ou vice-versa. (...) Numerosas obras contemporâneas ilustram essa concepção formalista de literatura; elas cultivam a construção engenhosa, os processos mecânicos de engendramento do texto, as simetrias, os ecos, os pequenos sinais cúmplices. (...) Para essa crítica, o universo representado no livro é auto-suficiente, sem relação com o mundo exterior.”

Outro crítico de renome, o professor Émile Faguet, titular da cadeira de Literatura Francesa na Sorbonne, também vai pelo mesmo caminho no ensaio A arte de ler, quando dá a um capítulo o título de escritores obscuros: “Esses autores desfrutam sempre de enorme reputação. Têm um bando e um sub-bando de admiradores. O bando é composto por aqueles que fingem entendê-los, o sub-bando por aqueles que não ousam dizer que não os compreenderam e que, sem os lerem, declaram que são primorosos”

Mas também há exemplos mais antigos. O irlandês C.S. Lewis, que morreu em 1963, dizia que a grande leitura não exige perícia ou força; exige, ao contrário, desarme e paixão. Lewis era um defensor do leitor leigo, “comum”, ou seja, “aquele que lê sem nada esperar, que lê simplesmente porque o livro o agarra e ele não consegue mais largá-lo”

É em busca desse leitor que vai a literatura que considera o entretenimento como valor estético. E não custa repetir: entretenimento não é passatempo, é sedução pela palavra. É um conceito ao qual se deve atribuir fundamento artístico. É um termo que não pode ser rotulado ou tratado com preconceito. É um gênero cuja boa tecelagem está entre as mais difíceis e trabalhosas.

Tudo é linguagem, mas a narrativa é a base da literatura. A escrita simples não é superficial: é a tradução laboriosa da complexidade. Escrever fácil é muito difícil.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Crônica no Jornal do Brasil - 15/7/2011

A saudade é minha culpa


As frases não ditas são eternas.

Não era o que eu queria dizer. Nem o que o ela teria dito. Mas já estava lá, escrito, como se fosse para nós. O que ficou de você em mim foram os fragmentos, polímeros, fractais, resíduos.

E o teu queixo no queixo do meu filho. Teu genoma em cada livro. Tua face em cada linha. Teu sangue em cada frase. Minhas frases, tuas digitais, e teu queixo, teu texto. O que você lê agora é o que resta nos olhos do rufião. Sobrevivi a expensas de galanteador, mas não voltei a me encontrar. Depois de você, todas tinham o mesmo defeito: nenhuma delas era você.

Nunca nenhuma delas será você.

Os outros são nossos narradores. Não há fuga possível para o discurso alheio que nos constrói. Estamos à mercê dos advérbios que não queremos, dos adjetivos que não merecemos, dos pronomes que foram trocados (de propósito). Nossa história não nos pertence. Não temos tempo.

Tempo é expectativa. É o portão de ferro da angústia.

Mas se você estivesse aqui, tudo seria diferente!

Se você estivesse aqui, pela oitava e única vez, prometo que tudo seria diferente.

Se você estivesse aqui, eu ouviria os comentários sobre meu egoísmo, concordaria com as mudanças, aceitaria as críticas, não me importaria com a verdade.

Se você estivesse aqui, o teu egoísmo não seria necessário.

Se você estivesse aqui, alugaríamos um apartamento bem pequeno para que os desencontros acabassem se encontrando.

Se você estivesse aqui, chegaríamos no mesmo passo, enfrentaríamos a chuva, dividiríamos a capa e a marquise.

Se você estivesse aqui, comeríamos no mesmo prato, dividiríamos a carne, beberíamos o licor no copo de vinho.

Se você estivesse aqui, levaria teu avô ao médico, cuidaria do teu pai, educaria teu irmão e te daria um filho.

Se você estivesse aqui, arrumaria um quarto pra tua mãe, fingiria que gosto dela e ainda acreditaria nos elogios.

Se você estivesse aqui, dormiríamos até mais tarde, com a cortina fechada e o mundo lá fora, sem importância.

Se você estivesse aqui, passaria o creme nos teus pés depois de lixar tuas unhas pra te livrar da solidão.

Se você estivesse aqui, eu me sentaria na beirada da cama por duas horas, com o paletó fechado, enquanto você escolhe o vestido da festa.

Se você estivesse aqui, puxaria o zíper até o final das costas, deixando minha respiração no pescoço perfumado.

Se você estivesse aqui, sairíamos pela noite da cidade iluminada, veríamos o filme do cineasta desconhecido, descobriríamos um restaurante íntimo, escolheríamos o prato da casa, cruzaríamos a ponte e veríamos o barco pela proa.

E tudo mais. Tudo que você sempre quis:

Ouvir Indian Maracas, do Pelv’s. Dançar na batida do Bob Sinclair. Degustar o macarron da esquina. Ler a bíblia do Roberto Bolaño. Ver a exposição do Albuquerque Mendes. Assistir à montagem do Cyrano. Ir ao show do Radiohead e não se conter na quarta música da lista. I wish I were special.

Se você estivesse aqui, eu teria evoluído.

Mas você não está.

Quando foi embora, deixou-me a culpa e o atraso.


* Escritor, jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense, Felipe Pena é autor de onze livros, entre eles três romances, todos publicados pela editora Record. Também trabalha como roteirista de televisão, coordena o Grupo de Pesquisas em Teoria do Jornalismo da Intercom e ministra oficinas de crônicas na Estação das Letras, no Rio de Janeiro. Tem dezenas de artigos científicos publicados no Brasil e no exterior, além de contos e ensaios em diversas coletâneas. Foi repórter da TV Manchete, comentarista da TVE-Brasil e sub-reitor da UNESA. É doutor em Literatura pela PUC-Rio, tem pós-doutorado em Semiologia da Imagem pela Université de Paris/Sorbonne III e é ignorante por conta própria. Contato: felipepena@globo.com