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Escritor, psicólogo, jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Literatura pela PUC-Rio, Pós-Doutor em Semiologia pela Université de Paris/Sorbonne III e ignorante por conta própria. Autor de doze livros, entre eles três romances, todos publicados pela ed. Record. Site: www.felipepena.com

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Queremos o Rio de Janeiro fora do Brasil (ou "E se fosse com os gaúchos")

Queremos o Rio de Janeiro fora do Brasil
Felipe Pena *


Imaginem se as perdas com os royalties do petróleo fossem do Rio Grande do Sul? Não duvido que, em poucos minutos, os gaúchos organizariam uma revolução e proclamariam a independência do estado. Até consigo imaginar as barricadas no Palácio Piratini, as trincheiras organizadas por barbudos com lenço vermelho no pescoço, o chimarrão queimando durante a noite e os generais do terceiro exército organizando suas tropas para proteger o levante.

Se fosse no Rio Grande, os facões sairiam das bainhas, o charque assaria nas fogueiras, Garibaldi reencarnaria em algum imigrante italiano, o Veríssimo faria crônicas arrebatadoras, a torcida do Inter fecharia as fronteiras e o Renato Borghetti tocaria o hino farroupilha com sua gaita ponto. Se fosse no Rio Grande, haveria luta. Mas a perda é do Rio Pequeno, o Rio de Janeiro.

O Rio de Janeiro começou a ficar pequeno na década de 1960, com a mudança da capital para Brasília e, de lá pra cá, a situação só piorou. Perdemos na política, perdemos na economia, perdemos na segurança, perdemos na referência. Ah, sim, continuamos como a capital cultural do país, mas dividimos esse royalty com a violência, sempre pontificada mundo afora como nossa maior mazela. Sem falar em outros problemas graves, como a falta de saneamento, a saúde sucateada e um obsoleto sistema de transportes. Mas o que esperar agora, quando deixaremos de arrecadar R$ 3 bilhões já em 2012, sendo que esse valor anual deverá duplicar até 2019?

Permitam-me responder: não devemos esperar. Se a presidente Dilma não vetar o projeto aprovado no senado, está na hora de pensarmos em sair da federação. Tomemos, pois, o Palácio Guanabara, torcendo para que o governador se junte a nós assim que chegar de Paris. Independência já! Queremos o Rio de Janeiro fora do Brasil. Se não temos chimarrão, podemos servir um chope gelado nas barricadas, acompanhado de um torresminho, claro, por que ninguém é de ferro. E, na falta do Renato Borghetti, chamamos o Dicró e o Zeca Pagodinho, além da bateria do Salgueiro pra manter a cadência da Revolução.


O Arnaldo Jabor pode aparecer no jornal da noite para incendiar os intelectuais, a Miriam Leitão explica os gráficos e o Zuenir Ventura reúne a cidade partida, quer dizer, o estado partido. A Raça rubro-negra ocupa a fronteira com São Paulo, a Young Flu toma a divisa com Minas e as caravelas vascaínas protegem nossos mares petrolíferos. Todos os pilotos de asa-delta serão chamados para a força aérea. As garotas de Ipanema serão convocadas para o serviço de inteligência. Os moderninhos do Leblon ficarão na retaguarda. Na Serra, no norte fluminense e na Costa Verde, milhares de voluntários se levantarão contra a injustiça, tomando o destino do povo em suas mãos enrugadas pelas enchentes do ano passado, já que não terão mais verbas para reconstruir as cidades.

Chegou a hora. Queremos o Rio de Janeiro fora do Brasil. E se você acha que tudo isso é uma piada, espere até ter sua aposentadoria cortada, seus filhos sem emprego e seu município em permanente estado de calamidade pública. Infelizmente, meu amigo, esse é um caso concreto de: independência ou morte.

Ou assunto pra mais um chopinho na praia.


• Felipe Pena é jornalista, escritor e professor da Universidade Federal Fluminense. Autor de 11 livros, é doutor em Literatura pela PUC-Rio, com pós-doutorado em Semiologia da Imagem pela Universidade de Paris – Sorbonne III.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Entrevista sobre o novo romance



Em 1989, Felipe Pena, então aluno do primeiro período de comunicação da UERJ, freqüentou semanalmente a Colônia Juliano Moreira, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Durante seis meses visitou os pacientes, ouvindo suas histórias e acompanhando seus dramas. Alguns internos mantinham um pequeno caderno em que relatavam o cotidiano nos pavilhões psiquiátricos. Era um caderno coletivo e caótico, com diferentes caligrafias, desenhos superpostos, anotações e rabiscos nas margens.

Com paciência, o futuro escritor ouviu de todos que escreviam ou desenhavam o incompreensível enredo daquela história. Vinte dois anos depois, usou a experiência como gênese e construção de “O verso do cartão de embarque”, que acaba de ser lançado. “É um livro sobre a irracionalidade dos rótulos, sobre os estereótipos, sobre a avareza cognitiva com que julgamos e somos julgados. É muito mais fácil impor um rótulo a alguém do que contemplar a complexidade, enxergar as nuances, perceber os fractais que compõem qualquer personalidade”, explica Felipe, também autor dos romances “O marido perfeito mora ao lado” (2010) e “Fábrica de diplomas” (2008), que compõem o que ele identifica como uma “trilogia do campus”, já que todas as obras apresentam como pano de fundo o meio universitário e um personagem recorrente, o professor Antonio Pastoriza.

Narrado de forma fragmentada, com a utilização de variados recursos (diário íntimo, roteiro de filme, atas de reunião, chats na internet), é, ao mesmo tempo, um romance de amor e de enigma, que surpreende o leitor desde as primeiras páginas, com a reprodução de uma crônica de jornal que mudará o destino das personagens. Nesta entrevista, Felipe Pena comenta sua mais recente obra, mas sem entregar a surpresa final. Porque, como o autor faz questão de lembrar, o livro “sempre pertence ao leitor”.








Pode-se classificar “O verso do cartão de embarque” como uma história de amor? Ou uma história de enigma?

É um romance sobre a irracionalidade dos rótulos, sobre os estereótipos, sobre a avareza cognitiva com que julgamos e somos julgados. É muito mais fácil impor um rótulo a alguém do que contemplar a complexidade, enxergar as nuances, perceber os fractais que compõem qualquer personalidade. E isso é muito cruel.
Os outros são nossos narradores. Não há fuga possível para o discurso alheio que nos constrói. Estamos à mercê dos advérbios que não queremos, dos adjetivos que não merecemos, dos pronomes que foram trocados. Nossa história não nos pertence.

Como se entremeiam, no romance, as fronteiras entre realidade e ficção?

Tenho muitas dificuldades para reconhecer essas fronteiras. Eu invento tudo que possa parecer realidade. Mas a minha matéria-prima é a pesquisa, o trabalho de campo, ou seja, uma “suposta” realidade, ou, pelo menos, a construção social dessa realidade, que está sujeita aos estereótipos que mencionei na resposta anterior. O que tento fazer é dançar sobre a realidade através da ficção, da narrativa, dos personagens e do trabalho em cima da linguagem. Aliás, muito trabalho. Sou um estivador de sapatilhas.


A narrativa fragmentada lhe permitiu a utilização de variados recursos, como crônica de jornal, diário íntimo, roteiro de filme, atas de reunião, chats na internet etc. Pode-se dizer que “O verso do cartão de embarque” é um romance com linguagem experimental?

Não há nada que já não tenha sido experimentado antes em outros romances, de outros autores. Apenas me pareceu que a fragmentação e os múltiplos recursos de linguagem seriam mais fiéis ao tema do livro.


Qual a importância de sua formação em psicologia para a gênese e a construção do livro? No apêndice, você menciona o tempo em que visitou os pavilhões psiquiátricos da Colônia Juliana Moreira, no Rio de Janeiro, quando teve acesso a um caderno em que os internos relatavam seu cotidiano.

A estada na Colônia Juliano Moreira foi em 1989. Durante seis meses, fiz visitas regulares aos pacientes, ouvi suas histórias, acompanhei seus dramas. Mas isso é muito pouco, quase nada mesmo, para chegar perto de entender o que era o cotidiano deles. Só os próprios poderiam fazer isso, e, mesmo assim, teriam que enfrentar a sombra opressora da linguagem (o que tentaram fazer, corajosamente, no caderno). Levei 22 anos para escrever este livro, que, obviamente, não é a reprodução das histórias do caderno, mas a inevitável conclusão de que o mundo “aqui fora” (com aspas infinitas, por favor) não é muito diferente.
Para um psicótico – ou louco, se você preferir – a loucura é um encontro apavorante com a falta de sentido. Ele é incapaz de reconhecer e nomear a partitura simbólica que rege o universo de comunicação das outras pessoas. Ele é incapaz de reconhecer a rede da linguagem, com seus códigos e procedimentos. Então, o louco é aquele que, através do delírio ou da alucinação, tenta reconstruir, à sua maneira, um mundo que tenha sentido.
A narrativa dos psicóticos não se localiza no rompimento com a realidade, mas no caminho para restaurá-la. Toda loucura é uma tentativa desesperada de sair da loucura.
Não é o que nós fazemos diariamente, em nossa aparente normalidade? Onde está a diferença?

Há alguma razão especial para que o livro seja dedicado a Geraldo Vandré?

Prefiro deixar esta resposta para os leitores.

Que relação você pode apontar entre “O verso do cartão de embarque” e o seu romance anterior, “O marido perfeito mora ao lado”, publicado em 2010?

Muito pouca. Apenas a utilização do personagem Antonio Pastoriza e a ambientação em um campus universitário, que vão na esteira do meu primeiro romance, “Fábrica de diplomas”, formando uma “trilogia do campus”.
“O marido perfeito mora ao lado” foi escrito com a clara pretensão de confundir as classificações de gênero. Tem jeito de história policial, pode ser lido como comédia romântica, a narrativa é alternada (ora em primeira pessoa, ora em terceira) e o título parece de auto-ajuda. Ainda assim, não passa de uma história linear, de inspiração folhetinesca, balzaquiana, com ganchos nos finais de capítulos e personagens do cotidiano, da comédia humana de nosso cotidiano.
“O Verso do cartão de embarque” envereda por um caminho completamente diferente, conforme mencionei nas primeiras respostas.

Como situar a presença do personagem Antonio Pastoriza, que é recorrente em sua obra?

Como o sujeito que sofre com as situações que o autor impõe a ele. E talvez o autor carregue nos rótulos e estereótipos, dificultando a vida do pobre Pastoriza. Mas ele parece gostar dos livros ou, pelo menos, finge gostar, já que escreveu a orelha do último romance. Queria aproveitar a pergunta pra me desculpar com o personagem. Posso? Então lá vai. Perdoe-me pelos inúmeros erros, Antonio. Perdoe-me pelos adjetivos injustos, pelas frases longas e também pelas curtas. Mas lembre-se que a história pertence a quem a lê. O nome do leitor é que deveria vir na capa, não o meu – como diria o Lobo Antunes. Então, por favor, divida a minha culpa com ele (o leitor, não o Lobo).


Em nota ao romance, são identificadas as referências explícitas e implícitas a autores da literatura brasileira contemporânea, entre os quais Reinado Moraes, Luiz Ruffato, Adriana Lisboa, João Carrascosa, Lourenço Mutarelli. São escritores de quem você se sente próximo?

São escritores que eu admiro. Assim como admiro o Luiz Eduardo Matta, o Edney Silvestre, o Rodrigo Lacerda, o Antonio Torres, a Carola Saavedra e o André Vianco, entre muitos outros. Mas não estou necessariamente próximo deles. Apenas me preocupo em ler os autores nacionais contemporâneos. E fico muito surpreso quando alguns escritores brasileiros citam apenas autores estrangeiros (ou nacionais que já tenham morrido) como suas referências. Gostaria de saber os motivos.

Seu primeiro romance, “Fábrica de diplomas”, de 2008, está sendo relançado pela Record. Você fez mudanças no livro?

Fiz algumas mudanças. Cortei um ou outro parágrafo para tornar a narrativa mais dinâmica.


Qual a importância do Rio como cenário de suas histórias?

O Rio de Janeiro está presente em todos os meus romances. Como diz o Antonio Gedeão, “minha aldeia é todo mundo, poço sem fundo”. Ainda há muito o que falar sobre esta cidade. E, falando sobre ela, falar sobre todas, conforme aprendi com o Renato Cordeiro Gomes.


O Manifesto Silvestre, de 2010, em defesa do entretenimento e da popularização da literatura, do qual você foi um dos signatários, continua de pé? Que avanços ou retrocessos você aponta na proposta?

Foi um momento importante para marcar a defesa da formação de leitores no país e de alguns gêneros que pareciam ignorados pela mídia e pela crítica. O número de signatários triplicou em um ano.
Mas acho que fui incompreendido por alguns colegas, tanto na academia como na literatura. Mesmo assim, continuo defendendo as ideias que estão descritas no manifesto, o que não quer dizer que elas sejam balizadoras dos meus romances (muito pelo contrário) ou dos romances dos demais signatários. Aliás, os signatários têm obras completamente distintas em termos de gênero e identidade. O texto é político – como todo manifesto – e assim deveria ser interpretado.
Mas, como já disse, o texto sempre pertence ao leitor.