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Escritor, psicólogo, jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Literatura pela PUC-Rio, Pós-Doutor em Semiologia pela Université de Paris/Sorbonne III e ignorante por conta própria. Autor de doze livros, entre eles três romances, todos publicados pela ed. Record. Site: www.felipepena.com

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Entrevista para o jornal O Estado de Minas

Entrevista para O Estado de Minas

1)Depois de lançar oito livros acadêmicos, de publicar dezenas de artigos científicos, e de se enveredar também pelo jornalismo, você resolveu abraçar a ficção, e publicou dois romances: O analfabeto que passou no vestibular, e O marido perfeito mora ao lado. Como se deu esta metamorfose, pretende continuar ficcionista? A experiência tem lhe agradado?

Eu sou um acadêmico. É minha formação, sou professor da UFF. Fiz mestrado e doutorado em literatura e hoje oriento teses. Mas certos hermetismos universitários sempre me incomodaram. A linguagem da academia, às vezes, é produzida como estratégia de poder. Quanto menos compreendidos, mais alguns professores se eternizam em suas cátedras de mogno, sem o controle da sociedade. E isso se reflete na literatura. Claro que há boas exceções e é necessário valorizá-las.

O fato é que eu sempre tive o desejo de ser romancista, mas não queria reproduzir o que vem sendo feito pelos escritores da minha geração (com até 39 anos), que optaram por seguir determinados ditames da crítica que são referendados por uma certa mídia especializada em literatura (novamente, há as boas exceções). Por exemplo, ainda que aprecie a metalinguagem e os jogos experimentais, não tenho vontade de enveradar por esse caminho. Tampouco tenho interesse nos enquadramentos de gênero. Meu único objetivo é contar uma história. Passei quase cinco anos anos escrevendo este livro com os olhos voltados para a carpintaria da narrativa. É isso que me interessa: a história, a narrativa, a tecelagem da palavra.

Pretendo continuar como ficcionista. Alguns amigos escritores têm feito considerações muito generosas. E recebi muitos elogios dos críticos que entenderam a proposta do livro. Isso tudo me anima a continuar. Não espero por prêmios, mas se eles vierem ficarei, nas palavras do Jamelão, como pinto no lixo: honrado e feliz.


2)Até onde ficção e realidade se misturam nos seus relatos?. A vida, às vezes, realmente suplanta a ficção?

Começo pelo título, que está ali para confundir, não para esclarecer. Ele é uma clara tentativa de não ser enquadrado em qualquer gênero. Tive a ideia quando alguém me contou que o "Raízes do Brasil" é colocado por alguns livreiros na estante de botânica. Então pensei em um título que pudesse ser confundido com auto-ajuda. Mas nem todo mundo entende. Houve um resenhista contratado por um grande jornal brasileiro que se recusou a fazer a resenha.

Tudo é ficcional nos limites que você mesmo alocou na pergunta, pois a vida, de fato, suplanta a ficção. Mas o livro conta uma história banal, que se passa com todos nós: um história sobre a incomunicabilidade entre homens e mulheres. Só que eu tento fazer isso misturando ironia e drama. O marido perfeito mora ao lado é um livro sobre o desejo. Conta a história de uma mulher insatisfeita com o casamento que tenta entender os motivos que a levaram àquele impasse. A partir daí, são apresentados conflitos que podemos identificar em nós mesmos, em nosso cotidiano.

3)O fato de ser psicólogo, de às vezes ouvir, como "um padre", as confissões das pessoas, contribuíram de uma forma ou de outra para a sua obra ficcional?

Sim, contribuíram. Mas não uso nenhuma das histórias que ouvi em consultório. Apenas aprendi a ter um ouvido treinado para os argumentos femininos, o que me ajudou muito na hora de escrever utilizando a voz de uma mulher. Além disso, a profissão também me ajuda no aprofundamento dos personagens, na concepção de seus dramas e na elaboração dos conflitos.

4)O professor João Assafim chegou a ver semelhanças entre seus relatos e a obra de Nelson Rodrigues..Você concorda, de certa forma se identifica com este escritor?

Seria muita pretensão minha aceitar a comparação com o Nelson Rodrigues. Alguns professores e jornalistas enxergaram essa semelhança e eu fico lisonjeado. Mas é o tipo de elogio que guardamos e não comentamos. Obviamente, fui influenciado pelo Nelson. Li a obra completa dele. Mas também fui influenciado pelo Otto Lara Resende, pela poesia do Drummond, por Balzac e por tantos outros que tenho até medo de citar alguns e esquecer os demais. Além disso, Sou influenciado pelo cinema, pela música, pelo teatro e pela própria TV.


5)No seu entender, o ser humano, é realmente um eterno insatisfeito? Temos medo de ser felizes, como afirmou Ernest Becker, em A negação da morte?. Ou o que disse Antonio Pastoriza, "que só valorizamos o que está ausente"?

Sim somos eternamente insatisfeitos. O desejo investe no vazio, naquilo que não temos. Mas isso também pode ser bom. O dia em que eu disser que realizei todos os meus desejos, estou morto. A insatisfação nos angustia, mas também nos faz seguir adiante. Ela é mobilizadora. Freud e Lacan trataram muito bem do tema.


6)Afinal de contas, por que o marido perfeito mora ao lado?

Como disse, o título está lá para confundir, não para esclarecer. Há várias chaves de leitura (embora não goste desse conceito). Um delas é sobre o desejo, outra pela questão de gênero, mas cada leitor vai encontrar uma explicação diferente para o título e eu valorizo isso. Como disse o Lobo Antunes na FLIP de 2009, o nome do leitor é que deveria vir na capa, não o do escritor.


7)Algum projeto novo em andamento? O que você tem feito, além de dar aulas na Universidade Federal Fluminense?

Estou escrevendo dois roteiros: um para cinema e outro para TV. Além disso, o "marido" será encenado no teatro no ano que vem e já comecei a escrever meu terceiro romance, que também é uma história de amor. Sou um otimista: acredito na palavra. Ao contrário do que apregoaram certos apocalípticos, a popularização da tecnologia valorizou a escrita e, portanto, aumentou o interesse pelo texto, pela palavra. Há leitores neste país, mas é preciso respeitá-los. É preciso produzir narrativas que não sejam meros exercícios de egocentrismo e/ou missivas elípticas endereçadas aos pares. Escrevemos para sermos lidos, o que deveria ser óbvio, mas parece um pecado mortal no sacro universo de alguns escritores da minha geração, cujo desejo maior é o de ser estudado e não o de ser lido. Ou seja, não estão interessados em leitores, estão interessados em bolsistas de mestrado.
C.S. Lewis dizia que a grande leitura não exige perícia ou força; exige, ao contrário, desarme e paixão. Lewis era um defensor do leitor leigo, “comum”, ou seja, “aquele que lê sem nada esperar, que lê simplesmente porque o livro o agarra e ele não consegue mais largá-lo”. Concordo plenamente.


quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Carta de Jack para o goleiro Bruno (escrita pelo aluno Aurélio Albuquerque)

Bruninho,

Não penses que foi fácil escrever-te. Nada é muito fácil depois que se não está e que não se é. Os meios de comunicação intramundos inda estão todos em mãos dos religiosos e minha luta por aqui tem sido pela laicização deles. Entretanto, enquanto isto não acontece, fui a um centro espírita recomendado por um corsário inglês à guisa de, pura e simplesmente, fazer contato contigo.

Neste ano que termina, pude acompanhar com alto grau de emoção, todo o desenrolar de tua história. Parabéns – hei de confessar que mereces. Se permitires, agora, te aconselho: jamais assuma. Os seres humanos não sabem conviver com a dúvida e, o fato de não confessares, os torturará tão sublimemente ao ponto de se assemelhar a uma obra de arte.

Lembro da época em que às ruas de Londres só falavam de mim. Está certo que, numericamente, estás muito longe de me alcançar, mas a matéria de tua poesia é da mesma qualidade: feminina. E não só isto, tens a preferência pelas putas. Sempre fui um apaixonado por elas e sempre estive disposto à contemplação não só de sua beleza exterior, mas, principalmente da interior: como eu gostava de lhes abrir o ventre e de lhes beijar as tripas! Quantas vezes, amigo, já dancei num quarto de hotel sobre um belo cadáver de mulher.

Aqui neste outro mundo, que é o mesmo, mas é outro, estive pensando em que belo trabalho realizaste com o cadáver para ocultá-lo do mundo: a obra foi tão sublime que quiseste guardá-la só para ti e para tua memória? Ah, como fizeste lembrar-me dos meus tempos de glória, tempos em que se valorizava o trabalho do assassino e em que todo crime contava com o labor e com o suor. Veja hoje, com estas bombas, com estas armas de destruição em massa, com o excesso de tecnologia… perdeu-se a arte, perdeu-se o contato, perdeu-se a magnitude que há em abrir um ventre ou torcer um pescoço. Sorte que ainda há artistas como tu.

Alegro-me duplamente, embora não seja exatamente um patriota, ao saber que meu país influencia tão positivamente o teu: primeiro com o futebol, matéria que hoje vós dominais melhor que nós e, também, com o avanço dos maníacos e assassinos por paixão (mais importantes que os por profissão) que têm se ampliado nestas terras em pleno desenvolvimento. Tenho uma teoria: quanto mais se desenvolve um país, melhor se tornam seus assassinos. Pois, não há coisa mais antiestética que matar por necessidade: parece apenas um mero ato vulgar e circunstancial de protesto social. Entretanto, matar sem propósito algum é um dom lotado de singelezas e preciosidades. Isto que me animou em tua atitude, o fato de não precisares matar, mas, ainda assim, teres matado.

Despeço-me aqui, jovem talento, despeço-me com o agradecimento por continuares as boas obras e boas práticas que comecei há quase dois séculos. Mande lembranças aos amigos de labor que andam por aí, seja àquele do Parque São Jorge, ou àquele casal da moça da novela, ou mesmo àqueles da garotinha da janela. Agradeça-os, pois me fazem saber que minha passagem pela vida não foi vã. Diga a eles o mesmo que direi a ti: ao final da vida, igualmente nos abraça a morte, então, mais vale a pena se divertir e dançar e nada melhor para isso que um belo corpo de mulher, morta.

Com admiração e algumas ressalvas,
Jack.

- Aurélio Albuquerque -

sábado, 30 de outubro de 2010

Um erro emocional - resenha publicada na Folha de S. Paulo

EM NOME DO LEITOR

Por Felipe Pena

Numa noite inspirada, durante a Feira Literária Internacional de Paraty de 2009, o escritor português António Lobo Antunes resumiu o que pensava sobre a recepção de sua obra pelo público com uma pequena frase de efeito: “o nome do leitor é que deveria vir na capa do livro, não o do escritor.”

Na plateia, o escritor brasileiro mais premiado do ano anterior buscava um diálogo imaginário com seu colega luso: “claro que sim, pois o leitor é que realiza o livro,” respondeu Cristóvão Tezza, vencedor dos prêmios Jabuti, São Paulo, APCA, Portugal Telecom, Bravo! e Zaffari & Bourbon de literatura com o romance O filho eterno, uma obra declaradamente autobiográfica que tem na fluência dramática seu grande mérito narrativo.

A preocupação com a resposta do leitor parece presente em quase todos os livros de Tezza. Não apenas pela já referida fruição, mas, também pelo flagrante desejo de contemplação que permeia seu texto. Consciente de que “os escritores são animais agonizantes e que se deve ter cuidado ao tocá-los”, como diz a personagem principal de seu mais novo romance, o autor catarinense escancara essa relação de dependência em seus diálogos, mas constrói elipses estratégicas para que eles, os leitores, possam grafar o nome no gigantesco espaço acima do título.

Nesse sentido, Um erro emocional é um livro para ser assinado por quem o lê. O enredo trata da conflituosa relação entre um escritor e sua leitora, dois seres que, aparentemente, habitam mundos diametralmente opostos, mas cuja interdependência permite uma aproximação pela própria história que os conduz. Paulo, o escritor, acredita ter encontrado a leitora ideal. Beatriz, a leitora, idealiza o autor através de seus livros. E não é disso que trata a literatura, ou melhor, a própria vida: idealização?

Os personagens sabem que os sentimentos carregam a mediação de conceitos e juízos de valor. Então por que não se deixar mediar pela palavra, a mãe de todas as mediações? É assim que os personagens se tornam cúmplices e revivem seus fracassos amorosos, suas frustrações e seus sonhos interrompidos.

Mas não se engane: este não é um romance metalinguístico. Embora tenha escolhido um escritor como personagem principal e até cite alguns autores modernosos durante o livro, Tezza não abre mão de sua marca principal: a história bem contada. Novamente, é o universo dramático que enreda a trama, levando o leitor a se tornar testemunha privilegiada dos acontecimentos. E isso é feito através de uma elaborada carpintaria literária.

Pra começar, os personagens dão a impressão de não dialogarem diretamente. Entretanto, o que poderia parecer um recurso trivial ganha originalidade na construção narrativa do autor. Mais do que explorar os diálogos interiores e discursos indiretos, Tezza nos conduz por atalhos abertos pelos coadjuvantes. São personagens de fundo - como Claudia, Cássio, Doralice e Donetti, por exemplo - que nos revelam as ações dos protagonistas, Paulo e Beatriz.

Tal configuração estilística talvez seja consequência da maneira como o romance foi se formando. Um erro emocional seria apenas um dos contos de uma antologia encomendada pela editora Record. Mas a complexidade da personagem Beatriz fez com que o autor esticasse a trama. A partir daí, ele costurou a relação com os demais personagens, cujas biografias foram construídas no interior do conflito principal.

Se fosse outro escritor, o resultado poderia ser volátil. Mas, ao lembrar que a obra só se completa na recepção (uma característica ignorada por muitos autores), Cristóvão Tezza nos entrega um livro perturbador, original e com lacunas bem dosadas, deixando para o leitor a prazerosa tarefa de se embrenhar pelas costuras e escrever o próprio nome na capa.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Comentário sobre a reedição do escritor Rodrigo de Souza Leão

Todos os cachorros são azuis


O jornalista, músico, artista plástico e escritor Rodrigo de Souza Leão morreu no ano passado, aos quarenta e três anos, em uma clínica psiquiátrica. Conviveu com a esquizofrenia durante os últimos vinte anos de vida, mas a doença não foi obstáculo para sua vasta produção. Tampouco foi incentivo, como acreditam alguns críticos. A obra de Rodrigo transcende sua condição psíquica e é muito mais do que um diário ou um libelo contra o transtorno mental.

Nas páginas de Todos os cachorros são azuis, finalista do prêmio Portugal Telecom de 2009, há uma prosa livre de rótulos. Repetindo: não se trata de um romance de hospício, muito menos de um autorretrato da loucura. Qualquer conceituação é insuficiente para definir esta narrativa, cujas referências eruditas e o humor rasgado não têm paralelo em nossa literatura. Rodrigo não é apenas original, é único.

A primeira edição, publicada em 2008, – cinco anos após o recebimento dos originais – teve apenas mil e quinhentos exemplares. Esta nova tiragem vem em boa hora, junto com a publicação do romance póstumo Me roubaram uns dias contados, cuja organização coube ao poeta Ramon Mello. Imperdível.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Comentário sobre o novo livro do Carrascoza

Espinhos e alfinetes

Os onze contos reunidos neste volume confirmam o gosto pela carpintaria estilística presente na literatura de João Anzanello Carrascoza. Entretanto, ao contrário de outros escritores contemporâneos, Carrascoza não tem na construção linguística o único objetivo de sua narrativa. Embora a preocupação com linguagem ocupe grande parte da obra, seu foco principal ainda é na precariedade da condição humana.

Este é o quinto livro de contos do autor, que também escreve para o público infanto-juvenil. Aliás, tal atividade parece ter forte influência nas histórias de Espinhos e Alfinetes, pois o olhar sobre a infância está presente em quase todos os textos. Carrascoza carrega na dramaticidade das relações entre pais e filhos de maneira poética, através de um encantamento peculiar, que é, ao mesmo tempo, sensível e preciso: “O pai voltou à sala, abotoado em seus silêncios. O menino sabia que era hora de não perturbá-lo, de só admirá-lo a ponto de se esquecer dele, num falso esquecimento”

Os contos de Carrascoza estão repletos de lirismo, mas não de sentimentalismo. Com muita habilidade, o autor consegue se equilibrar entre o ambiente onírico da fantasia e a dura percepção da realidade. Não seria exagero apontá-lo como um dos melhores contistas do país.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Crônica de Domingo no Jornal do Brasil

As últimas leitoras do jornal

Toda leitora é sentimental. Toda leitora é cândida. Toda leitora espera pela última lágrima, pelo amor impossível e pelo clichê, mesmo que de forma inconsciente. E quem não se encaixa nessa regra não é leitora, é intelectual. Então, volte para o James Joyce ou ligue no Discovery.

Berenice abriu o jornal na página sete. Os olhos bateram direto na crônica de Antonio Pastoriza, que ocupava a parte superior, bem acima do artigo do presidente da ordem dos advogados, cujo tema, como de costume, versava sobre a urgente necessidade de reformas constitucionais. Para a maioria dos leitores, a disposição dos textos denunciava uma certa vocação literária na editoria de opinião, priorizando o ritmo leve e despretensioso da crônica sobre o tom solene e positivista do artigo.

Poderia parecer que o jornal assumia a completa incapacidade do jornalismo em apresentar os fatos, reproduzir a realidade, dizer a verdade. E, então, falaríamos em redundância. Mas, para Berenice, jornalista experiente e repórter da principal rádio do país, havia muito que estas questões já estavam resolvidas. Sabia que o máximo que podia apresentar era um efeito sobre o real, a narrativa possível, a versão.

Suas reportagens construíam socialmente os acontecimentos. Não podia acreditar na isenção, na neutralidade, no paradigma do espelho, cuja crença era de que o jornalismo refletia a realidade. Seus chefes diziam que ela precisava ser objetiva, mas Berenice insistia na subjetividade, na inferência, nos clichês que a estabilizavam diante de um mundo cujas leituras eram tão perturbadoras.

E Pastoriza era muito perturbador. Aquele texto a inquietava, desesperava, reconstruía seus próprios clichês e lágrimas. Era uma crônica escrita para ela, com as digitais dela, a história dela. As quatro letras do apelido, a colcha roubada, as garrafas vazias. Pormenores que só ela poderia conhecer. Só ela poderia (re)conhecer.

Já Nicole, a outra leitora, tinha formação e informação diferentes. Nos tempos em que frequentava o curso de nutrição no interior de Minas, o jornal parecia um desperdício de tempo. Não só o jornal, mas qualquer tipo de texto, impresso ou manuscrito, amador ou profissional. A única leitura possível eram as fotocópias dos compêndios de bioquímica, traficados pelos veteranos da faculdade. E se a obrigação acadêmica já era um estorvo, qualquer outra letrinha no papel tornava-se uma tortura. Nunca tivera prazer algum em ler qualquer coisa. Simples assim. Ponto final, fecha parágrafo e vamos direto pra internet, pra TV a cabo ou pro salão fazer as unhas.

O que mudava naquela tarde outonal não era o repentino despertar para a literatura. Muito menos o reconhecimento de um talento extraordinário na crônica de Pastoriza, ou, quem sabe, uma visão mediúnica desencoberta pela palavra. Não, nada disso. Nicole tinha motivos pessoais para abrir o jornal na página sete. Aquele texto fora escrito para ela, sobre ela, dedicado a ela. Estava ali, em cada letra, cada frase, cada espaço entre as frases, que só ela podia preencher.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Entrevista, Resenha e programa do Jô


Gazeta do Povo, de Curitiba:http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=990525

Site Mundo Mulher, da Globo.com: http://www.mundomulher.com.br/?pg=17&sec=28&sub=29&idtexto=10243&keys=Bate-Papo+com+Felipe+Pena+++Por+Janaina+Rico

Blog da nanie: http://naniedias.blogspot.com/2010/08/o-marido-perfeito-mora-ao-lado-felipe.html

Mundo sobre linhas: http://mundosobrelinhas.blogspot.com/2010/07/o-marido-perfeito-mora-ao-lado-felipe.html

Leituras pontocom: http://leituraspontocom.blogspot.com/2010/07/o-marido-perfeito-mora-ao-lado-de.html

Programa do Jô: http://video.globo.com/Videos/Player/Entretenimento/0,,GIM1258541-7822-ESCRITOR%20E%20PROFESSOR%20FELIPE%20PENA%20FALA%20DE%20SEU%20SEGUNDO%20ROMANCE,00.html

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Palestra na Off FLIP


Darei palestra na Off Flip, em Parati, nesta sexta-feira, dia 6 de agosto, às 17 horas, no Ram Dam Café, que fica na Rua do Comércio 308. A entrada é franca.

Aproveito para homenagear nosso paraninfo. o escritor Edney Silvestre, pelo prêmio SP de Literatura.

Merecido, Edney !

quinta-feira, 29 de julho de 2010

O cronista sem jornal (sexta no Jornal do Brasil)


O CRONISTA SEM JORNAL

Muitos anos depois, diante do pelotão de fotógrafos e jornalistas, Nicole haveria de recordar aquela tarde gelada em que leu a última crônica de Antonio Pastoriza. Botafogo era então um bairro pacificado, livre da violência urbana dos anos anteriores, protótipo de um suposto modelo de segurança pública que serviria para toda a cidade: polícia no morro, milícia disfarçada no asfalto e a periferia esquecida pelo estado. Mas a primavera atípica, com nuvens pesadas e temperaturas glaciais para a época, deixava as mãos trêmulas, ásperas, sem confiança. A respiração arquejante parecia em contraste com a tranquilidade do lugar.

O vento na varanda levantava as folhas do jornal. Era preciso dobrá-lo em quatro, além de se desvencilhar das páginas de política e cultura. O que ela queria ler estava na editoria de opinião, onde eram publicados os textos de romancistas, poetas, médicos, advogados, professores, humoristas, sádicos e afins, uma editoria redundante, pensava, tratando como exceção apenas as linhas semanais de seu escritor favorito.

Mas o que viu estampado no papel sujo foi decepcionante. Não valia nem o esforço contra o vento. Então era isso? Só isso? Nada mais do que isso? A última crônica de Pastoriza resumia-se em ser apenas a última crônica de Pastoriza. Nada de gestos heroicos, paixões impertinentes, amores impossíveis. Nada de nada. Mil vezes nada. Não, não podia ser. Isso não era papel para um cronista!

Onde estavam as metáforas brilhantes, as metonímias inteligentes, as frases reveladoras? Naquele momento se arrependia de cada minuto perdido com as leituras anteriores. Dos atrasos para a aula de dança, das brigas com o namorado, do peixe esquecido no aquário, da cerveja solitária no sofá, da cumplicidade que acreditava ter. Definitivamente, o sujeito não a merecia.

Querida Nicole, perdoe a despedida sem glamour, o texto insosso, a criatividade zerada. O amor acabou, a amizade ruiu e o papel do jornal agora é outro. Deixo apenas aquele beijo na testa que é pior do que dizer adeus.

Cronista sem jornal não é ferrari sem gasolina, é fusca sem capô, cavaquinho sem corda, praia sem chinelo, botequim sem cachaça, batata sem bife, Nelson Sargento com dentadura.

Cronista sem jornal é erro de semântica. É dialética a prazo, sem juros, em dez vezes, nas Casas Bahia. É a perda da sintaxe, do sentido. É a gramática velha, a ortografia antiga, com trema e acento nos ditongos orais crescentes.

Cronista sem jornal não tem direito ao último pedido, ao afago feminino, ao gozo embevecido. Cronista sem jornal não tem direito a voltar no tempo e pedir a leitora em casamento.

Cronista sem jornal é Pastoriza sem Nicole. E uma vida pela frente.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

O amor enlouquece


Que história é essa, doutora? Por que ele nunca voltará a ser o que era? Tudo bem, tô ouvindo: ninguém se banhará duas vezes nas águas do mesmo rio. Isso é filosofia grega? Então é antigo pacas! E o que esse tal de Heráclito sabe sobre o meu marido? Quando a gente olha para a margem do rio, a água já passou, portanto é outro rio. Essa parte eu entendi, mas não compreendi. Então: nada do que foi será, de novo, do jeito que já foi um dia. É! É poético! Parece letra de música. Mas não esclarece nada.

Chega de metáfora, doutora. Isso deixa a gente ainda mais confusa. Por acaso, você é um rio, Carlinho? Fala, criatura! Pelo menos, responde às perguntas. Esse rio deve estar cheio de piranha, doutora. Não, não tô sendo grosseira. Tô falando de traição mesmo. Conta pra ela, Carlinho.

Eu ouvi, ninguém me contou. Ele não sabe disfarçar, é incompetente até na hora de ter um caso. Que tipo de homem dá o telefone de casa pra amante? Isso é primário, doutora! É muita burrice! O celular existe pra quê? Não, eu não falei com ela. Nem escutei a conversa na extensão. Mas toda vez que eu atendo, desligam. Só pode ser ela, a perua. Às vezes, fico em silêncio pra ver se identifico a voz, mas ela é malandra, não fala nada. Deve perceber que sou eu pela respiração. Mulher traída respira mais fundo, ofegante. Toda amante sabe disso.

Tenho vontade de procurar um desses garotos marombados de academia e dar o troco. Mas falta coragem. Ia dizer o quê? Prazer, meu nome é Olga, sou corna e tô a fim de me vingar. Quer dar umazinha comigo? Não consigo, doutora. Tenho chifre, mas sou honesta. Ainda me resta dignidade.

Claro que tenho certeza. Pelo olhar, doutora. Não é o olhar dele, é o dos amigos. Fala aí, Carlinho. Confessa logo! Os amigos me olham com pena, como se eu fosse uma coitadinha. Olha lá a chifruda! Todos ficam com aquela cara de segredo, cochichando pelos cantos. Eles também devem ter suas pururucas aí pela rua.

É genético. Há um cachorro no DNA de cada homem, não tem jeito. Só que precisa ser discreto, né doutora? Meus outros namorados não eram santos, mas não davam bandeira. Nunca tive problema, nunca desconfiei de nada. Só o Carlinho consegue me deixar assim. Por que, doutora? Por que ele não se transforma num ogro verde e fedorento? Claro que ainda me interessaria por ele.

O cara não precisa ser bonito, mas tem que ter pegada. E tem que gostar de uma mulher só. Uma só, entendeu? Conheço uma porção de exemplos, doutora. Tem o Cyrano de Bergerac, aquele do narigão. Lembra dele? E do Lancelot, apaixonado pela rainha? Tem também o Romeu, maluco pela Julieta. O Bentinho, alucinado pela Capitu. O Titus, perdido de amor pela Berenice. Taí: boa lista. Três caras de pegada: Shakespeare, Machado e Racine.

Não estou confundindo autor com personagem. Quem disse que eram bonitos? Claro que não. O Romeu devia ter um monte de espinhas na cara. Só um cara muito feio fala em forma de verso. Dá um tempo, doutora! Vê se o Carlinho já fez alguma poesia pra mim?! Fez, Carlinho? Fez? Ele não escreve nem cartão de natal. Tá economizando pra amante, não tem outra explicação. Se fosse um filme, tocaria aquela musiquinha de mulher mal amada, tipo Empty garden ou Candle in the wind. Detesto o Elton John, doutora.

A realidade é diferente, eu sei. Não pense que vivo no mundo da fantasia. Gosto de cinema, leio romances, vou ao teatro. Mas conheço muito bem a vida real. Só que a minha vida real é isso aí. Real demais, doutora. Não tem a menor graça. A realidade me sufoca. O Carlinho também. Cadê meu príncipe? Fiquei com o sapo e não existe aquele truque do beijo. Na minha realidade, nada se transforma. E ainda vivo o papel de bruxa na história, com a maçã na palma da mão e uma verruga na ponta do nariz. Não sou Gata Borralheira nem Cinderela. Meu nome é Olga, a bruxa.

Tá rindo de quê, Carlinho?

quinta-feira, 24 de junho de 2010

O verso do Cartão de embarque - Crônica desta sexta-feira no Jornal do Brasil

O verso do cartão de embarque




Penso em você sempre que faço o check in nos aeroportos de minhas turnês literárias. Não é a partida, nem a chegada. Muito menos a viagem ou a imaginação de tua companhia nos lugares onde nunca estás. Tampouco a nostalgia das noites em que tua presença parecia eterna. Pra ser sincero, o que te traz à memória é preencher o verso do cartão de embarque.

A moça da companhia aérea, com aquele sorriso morno e o cabelo passado a ferro no tintureiro, solicita que eu escreva nome e telefone de um contato para emergência. Que tipo de emergência? – pergunto, retoricamente, já sabendo o significado. E cravo o teu número no papel.

Poderia ser o número lá de casa. Ou de alguém da família. Quem sabe o daquele primo distante com fama de resolver todo tipo de problema, o que, sem dúvida, inclui resgatar parentes desaparecidos no ar. Mas não consigo ser tão pragmático. É o teu nome que me vem à cabeça.

Nome não. O que escrevo são as poucas letras do teu apelido, imaginando a tua reação com o telefonema de um estanho pronunciando a palavra cujo significado é tão íntimo para nós. Tão cúmplice de nossas manias. De nossos erros. De nossas festas. O apelido que surgiu naquela noite iluminada, entre colchas roubadas e garrafas vazias. O apelido pequeno, mas definitivo. O apelido que agora ouvirás de um senhor de terno, com formação em psicologia e a voz pausada. Mas que, mesmo assim, ainda vai te fazer pensar que sou eu ao telefone.

Não haverá desespero ou sofrimento. Ninguém é obrigado a acreditar no que parece impossível. Temos a eternidade, não temos? A realidade não importa, meu amor. São os versos do Baudelaire, as músicas do Renato e as frases de Gabriel que nos unem neste umbigo literário onde habitamos. Não somos carne, somos letra. E nos momentos em que fomos carne, também houve letra.

Quando o telefone tocar, ainda será a minha voz distante na garganta desconhecida. Mesmo que o timbre tenha mudado e o texto seja tão ruim quanto o daqueles experimentalistas do Leblon. Abstraia, sublime, idealize. Leia as cartas que mandei, os e-mails que você armazenou, os livros que escrevi só para que você olhasse pra mim. Eles também não são grande coisa, mas são seus.

Onde quer que eu esteja, continuo a trocar os pronomes e a desrespeitar a pontuação. Por aqui não há regras gramaticais ou fiscais da semântica, embora sempre tenha gostado de ambas e, só por isso, tivesse vontade de mudá-las. Ainda ouço tuas leituras noturnas, a revisão das frases, os poemas em voz alta. Nas crônicas deste lugar, só se fala na menina cujo apelido sempre me inspirou. Não sabia que você era tão famosa!

Tenho que me despedir. O avião vai partir e é preciso desligar os aparelhos eletrônicos. Uma aeromoça pediu que eu ajeitasse a poltrona e apertasse o cinto de segurança. Disse que havia mudado de ideia, não queria mais viajar. Mas ela me mostrou as portas fechadas e o sinal luminoso indicando a decolagem. Não há mais tempo. Mantenha o telefone no gancho, verifique o servidor da internet e não se esqueça de pagar a conta do celular.

Sei que te amo porque, na hora do embarque, é a tua imagem que me conforta.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

O AMOR NÃO DISCUTE, VAI EMBORA. (crônica de hoje no JB)

O amor não discute, vai embora

Ela o manipulava utilizando a própria indignação como estratégia. E não precisava se colocar no papel de vítima. Bastava fazê-lo perceber os julgamentos injustos, a paranóia, a insegurança. Mostrava-se plena, absoluta. Uma confiança quase religiosa perpassava seu sorriso meio de lado enquanto falava. Mas não era tão confiante assim.

Só pareceu ter a situação sob controle até reparar nas estantes vazias da sala e nos caixotes com livros perto do bar, onde, no lugar das garrafas, jaziam pedaços de jornal velho. Havia candelabros cobertos com plástico e quadros embrulhados com papelão. Duas malas cheias estavam empilhadas ao lado da porta, junto com alguns objetos que ainda não haviam sido embalados.

Sentiu o golpe, mas fez-se de desentendida. Aquele idiota recalcado estava fugindo! Fugindo de verdade! Fisicamente. Geograficamente. Covarde filho-da-puta! Por que ficar de conversinha se já estava decidido a partir? Teve vontade de ser mais violenta do que ele, e não apenas de forma verbal. Precisava mordê-lo, arranhá-lo, bater naquela cara bonita. Como ele era bonito! Agora ainda mais, como um soneto incompleto, uma escultura neoclássica sem os membros, algo inacabado e, por ser inacabado, muito mais bonito.

Não tinha um rosto geométrico. Era masculamente desproporcional: os olhos grandes, as maçãs salientes, o queixo pontiagudo e rachado, a barba meio grisalha com falhas visíveis em ambos os lados. E os sulcos laterais denunciando a idade, o detalhe preferido dela. Um rosto perfeito de um homem perfeito. Tão perfeito que não o veria mais.

- Vou voltar pra casa. Não posso mais ficar aqui. Meu voo está marcado pra depois de amanhã.

Então era o fim. Antes mesmo do começo. O fim. O que poderia fazer? Segurá-lo pelo pescoço? Encenar um escândalo? Suplicar para que ficasse? Dizer: eu te amo, não me abandone! Isso seria pior do que perdê-lo. Porque perderia a fleuma, a postura altiva, a verve crítica que o conquistara. E, nesse caso, o perderia de qualquer jeito.

- Não há encantamento na hora da partida. – ele disse. E ela ficou em silêncio.

O jogo de aforismos de repente perdera o sentido. Não conseguia elaborar uma resposta à altura, uma frase de efeito, algo genial que a trouxesse de volta ao controle. Pela primeira vez, não sentia qualquer prazer na superioridade intelectual. Naquele instante, gostaria de ser uma dona de casa siciliana, com as ancas largas, a lasanha no forno e as crianças na barra da saia.

Queria não ter pensado na carreira, no mundo, na sociedade capitalista. Queria não ter se filiado a um partido de esquerda. Queria não ter brigado com a família. Queria não ter lido Nietzsche, Foucault, Marx, Freud, Deleuze, Lacan. Queria não ter ombros largos. Queria não ter opinião.

Mas tinha. E era estranho pensar como tudo que representava tanto valor poucos minutos antes agora não passava de névoa, espuma de chuveiro, pó.

Deslizou o corpo pelo sofá, segurando no braço, para não cair. Olhou reto, certeira, nos olhos dele. Uma lágrima insistia em romper o bloqueio emocional, mas ela a segurou, refez o dique. Enxugou o canto, discretamente, dilatando a pupila para disfarçar. Ele se aproximou, curvou o corpo, tentou beijá-la na testa, mas ela o afastou.

Beijo na testa era pior do que separação.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Prólogo do livro O MARIDO PERFEITO MORA AO LADO

Prólogo


Por que estamos aqui? Sei lá! Culpa dele, só dele. Responde aí, Carlinho! Ele não fala, ficou mudo. Fala, Carlinho! Conta a nossa história. São dez anos. Conta tudo, desde o começo. O primeiro encontro, o vinho, as flores, o beijo. Não, o beijo não. Disso ele não lembra mais. Depois de um tempo só ficam aqueles estalinhos de boa noite, como dois compadres siberianos. E as promessas, claro.
Conta pra ela, Carlinho! Como não prometeu nada? Cadê o cara que abria a porta do carro, que elogiava o vestido, que recitava poesia no ouvido, que me olhava com fome e enfiava a língua na minha garganta? Você inteiro foi uma promessa. Ninguém avisou que tinha prazo de validade.
É por isso que estamos aqui, doutora. Eu te chamo de doutora ou pelo nome mesmo? Então prefiro doutora. A senhora pode me chamar de Olga. Não gosto de formalidades. Não é, Carlinho? Fala, Carlinho! Isso aqui é pra nós dois. Terapia de Casal. Pra mim e pra você, entendeu? Continua contando!
Pula pro apartamento. Não é sexo, Carlinho! Quer que eu fale de prazo de validade outra vez? Fala do apartamento, quando fomos morar juntos. Eu sei, você não me convidou. Meus sapatos é que invadiram o teu closet, os vestidos se apossaram dos cabides e as blusas invadiram as gavetas. Pra que você precisava de tantas camisas listradas? E a coleção de calças de lã? No Rio de Janeiro, Carlinho!? Você não convidou, mas também não desconvidou. Outra promessa.
Claro que era uma promessa. Fiz comidinha, arrumei a cama, até lavei a louça. Uma esposa vitoriana, que nem a tua mãe, a tua avó e toda a italianada da tua família. Como não era esposa? Essa era a maior das promessas.
Você era perfeito, Carlinho.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Parte final do artigo publicado no jornal Rascunho


Sobre literatura

há um movimento contrário ao “status quo literário” no interior da própria crítica. O recente livro do ensaísta búlgaro Tzvetan Todorov, um dos herdeiros mais ilustres do formalismo, é um claro exemplo. Em A literatura em perigo (Difel, 2009), Todorov afirma que o principal risco que ronda a literatura é o de não participar mais da vida cultural do indivíduo, do cidadão. E isso acontece, segundo o autor, porque os escritores não se preocupam com a afetividade e o prazer do leitor, limitando-se apenas a aspirar ao elogio da crítica.
Em um mea culpa corajoso, Todorov conclui: “A história da literatura mostra bem: passa-se facilmente do formalismo ao niilismo ou vice-versa. (...) Numerosas obras contemporâneas ilustram essa concepção formalista de literatura; elas cultivam a construção engenhosa, os processos mecânicos de engendramento do texto, as simetrias, os ecos, os pequenos sinais cúmplices. (...) Para essa crítica, o universo representado no livro é auto-suficiente, sem relação com o mundo exterior.”
Outro crítico de renome, o professor Émile Faguet, titular da cadeira de Literatura Francesa na Sorbonne, também vai pelo mesmo caminho no ensaio A arte de ler (Casa da palavra, 2009), quando dá a um capítulo o título de escritores obscuros: “Esses autores desfrutam sempre de enorme reputação. Têm um bando e um sub-bando de admiradores. O bando é composto por aqueles que fingem entendê-los, o sub-bando por aqueles que não ousam dizer que não os compreenderam e que, sem os lerem, declaram que são primorosos”
Mas também há exemplos mais antigos. O irlandês C.S. Lewis, que morreu em 1963, dizia que a grande leitura não exige perícia ou força; exige, ao contrário, desarme e paixão. Lewis era um defensor do leitor leigo, “comum”, ou seja, “aquele que lê sem nada esperar, que lê simplesmente porque o livro o agarra e ele não consegue mais largá-lo”
É em busca desse leitor que vai a literatura de entretenimento. E não custa repetir: entretenimento não é passatempo, é sedução pela palavra. É um conceito ao qual se deve atribuir valor artístico e estético. É um termo que não pode ser rotulado ou tratado com preconceito. É um gênero cuja boa tecelagem está entre as mais difíceis e trabalhosas.
Tudo é linguagem, mas a narrativa é a base da literatura. Uma história bem contada é a meta que perseguimos.

sexta-feira, 26 de março de 2010

O casamento e o Desejo (crônica de hoje no JB)

Desejar é um verbo intransitivo. O desejo investe no vazio, naquilo que não temos. O marido rico, bonito e fiel só pode ter a unha encravada. A mulher boa é a da rua, já que não está na casa, claro. Só valorizamos o que está ausente, ou seja, aquilo que só percebo quando perco, porque, depois de perdido, ele se torna perfeito.

Assim é o desejo humano, atormentado por uma eterna insatisfação. Para toda demanda explícita, existe uma outra, implícita, que é inalcançável, pois sempre se renova. Estamos sempre insatisfeitos, mas, ao mesmo tempo, é essa insatisfação que nos move. Um paradoxo complexo, cuja melhor maneira de entender é não tentar entendê-lo, apenas assumi-lo.

Um bom começo é perceber que homens e mulheres têm cérebros diferentes. Existe uma região no lado esquerdo do encéfalo, chamada área de Werneck, cujo tamanho é duas vezes maior nas mulheres. Essa área é a responsável pela linguagem. Ou seja, as mulheres têm uma capacidade muito maior de transformar sentimentos em signos linguísticos e, por consequência, de se expressar. É por isso que discutem muito melhor a relação, enquanto os homens fogem como cordeiros apavorados. E isso se reflete no desejo. Na maioria das vezes, as mulheres associam sexo com sentimento, enquanto os homens, atraídos pelo visual, tendem a não dar tanto valor a esse tipo de associação. Mas é bom deixar claro que há muitas exceções. E ainda temos que levar em conta os aspectos culturais, psíquicos e sociais.

Então não tire conclusões precipitadas. Nada disso significa que o homem tenha uma tendência inevitável para a infidelidade, ou que a mulher seja sempre romântica. A tal da explicação darwiniana para a poligamia masculina é muito reducionista. O homem inteligente é fiel, valoriza o que tem. E o mesmo acontece com a mulher. Ambos fazem isso reinventando o desejo, criando fantasias, descobrindo outros no interior de si mesmo e explorando a diversidade que habita o imaginário do parceiro.

Há um vício antigo de só perceber um amor quando estamos na iminência de perdê-lo. Mas os homens e mulheres com senso crítico descobrem esse erro e passam a valorizar o que está dentro de casa, sem precisar recorrer a casos extraconjugais. Reinventam o desejo com criatividade, além de se dedicarem a pequenos gestos diários, como o simples ato de abrir a porta do carro, de elogiar o cabelo ou de perguntar como foi o dia no escritório.

Não acredite na velha história de que a grama do vizinho é sempre mais verde. Ou na tese de que ninguém é bom o suficiente para você. Casar pode ser a maior bênção de sua vida. Muitos dirão que o casamento é uma instituição falida, em crise, mas as pessoas continuam casando. Deve ter alguma coisa boa nisso aí!

Acredite, meu amigo: a crise não é do casamento, é do ser humano. E é perene, absoluta, inabalável. Tentamos administrar nossas neuroses diariamente. Mas deve ser melhor estar em crise acompanhado do que sozinho. Dividir angústias e compartilhar risadas ainda são premissas eficientes para manter um casal.

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domingo, 28 de fevereiro de 2010

Crônica da semana passada no Jornal do Brasil

Os amores de Berenice


Cazuza queria a sorte de um amor tranquilo, com sabor de fruta mordida. Renato Russo citava Camões e o fogo ardia aos olhos do público, nítido, visível, contrariando o poeta português. Nada tão diferente, nada tão parecido. Porque assim é se lhe parece, concluiria Pirandello, na frase que já virou clichê.
Minha amiga Berenice também ouviu/leu todos esses caras, influenciada pelo pai, um tal de Racine, e pela mãe, a honorável Angela Dutra de Menezes. Mas, nos últimos dias, anda desiludida com os escritores. Acha que são seres que não aparentam ter amado e, portanto, estariam incapacitados para falar de amor.
Ah, Berenice! Leia Pirandello novamente. De que aparências você está falando? Sua mãe não lhe ensinou que a boneca Emília era real? E seu pai não falou sobre o Titus? É o imaginário que constitui a realidade do escritor, não o seu cotidiano. Esqueça as biografias, os relatos jornalísticos e todas as narrativas com pretensão de verdade. O que você procura está em outro lugar.
E o que é o amor, Berenice? Pergunta difícil, eu sei. Freud tentou responder, Jung também, Lacan idem. E toda uma estirpe de supostos cientistas da alma. Mas quem se importa com eles? Olhe pra você, que tanto critica as aparências. O que lhe parece? Diz aí, Berenice!
O beijo de parede, a pele quente, o perfume no suor, o cabelo puxado até o dorso? É isso o amor, Berenice? Então, o que é? A umidade, os planos, as palavras, o cubo mágico, a cumplicidade? É isso?
Uma caminhada pelo Pére Lachaise, a Carmen de Bizet, o chope do Jobi? Ou a noturna de Chopin? Os diálogos do Woody Allen, o Jim Morrison improvisando em The end, o último parágrafo de Cem anos de Solidão, a tapioca da baiana no Nativo, os jardins do Museu Rodin, o Tom Jobim sussurrando a canção que eu fiz pra te esquecer, a rede social em que trocamos segredos, teus olhos virando a página de um manuscrito? O que mais pode ser, Berenice?
Você não é uma discípula de Parmênides ou de São Tomé. Não que ver para crer. Não quer o real estereotipado. Seus amores invertem o axioma: as aparências desenganam, pois é a fantasia que move o desejo, que passa o creme no corpo, que usa o espartilho.
A mesma fantasia inscrita no livro que ele autografou. Aquele, lembra? A leitura na cama, cortando as frases, fazendo anotações nas bordas. A leitura nas entrelinhas, na margem, no rosto. A leitura em movimento. E uma Berenice trêmula, ofegante, urgente, roendo as unhas da mão esquerda e lembrando de tudo que, naquele momento, lhe parecia amor.
O amor na varanda, de madrugada, com o som alto e os vizinhos ruborizados. O amor no sofá. O amor de conchinha. O amor plural, embora singular no endereço. O amor de quem troca os pronomes e escreve uma crônica pra você. O amor de um escritor, para quem nada é o que parece, e cujas frases saem tortas e embargadas pela tua ausência.
Nosso amigo Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazju, transformava o tédio em melodia. E aí estava uma boa definição. O amor, Berenice, somos nós, na batida, no embalo da rede. Matando a sede na saliva.
E tudo mais que houver nessa vida.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Novo romance em pré-venda na Saraiva




Aí vai o link da Saraiva para O MARIDO PERFEITO MORA AO LADO:

http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/2870258/o-marido-perfeito-mora-ao-lado/?ID=C9112A247DA02121136281020

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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Manifesto literário do Grupo Silvestre

MANIFESTO SILVESTRE

- Em defesa da narrativa, do entretenimento e da popularização da literatura –



Nós, autodenominados “grupo silvestre”, signatários deste manifesto, apresentamos algumas propostas para a literatura brasileira contemporânea.

1. Em literatura, entretenimento não é passatempo. É sedução pela palavra.
2. Tudo é linguagem, mas a narrativa é a base da literatura. Uma história bem contada é o objetivo que perseguimos.
3. A ficção brasileira precisa ser acessível a uma parcela maior da população. O que não significa produzir narrativas pobres ou mal elaboradas. Rejeitamos o rótulo de superficialidade. Escrever fácil é muito difícil.
4. Os academicismos, jogos de linguagem e experimentalismos vazios não nos interessam. Respeitamos a produção que segue estes parâmetros, mas nosso caminho é inverso.
5. Estamos preocupados com a formação de leitores assíduos e frequentes para a ficção brasileira.
6. A literatura não pode se limitar a uma elite que dita regras, cria rótulos e se autoenaltece em resenhas mútuas, eventos e panelas.
7. O autor pode e deve se esforçar pela disseminação de sua obra, o que significa se envolver com a distribuição, o marketing e demais processos da produção.
8. Gostamos de enredos ágeis e cativantes. E valorizamos títulos que chamem a atenção do leitor e despertem a vontade de chegar até o livro.
9. Não colocamos o desejo soberano de ser lido como única origem do processo criativo. Mas queremos espaço para aqueles que têm tal desejo.
10. Apesar da tão apregoada diversidade da prosa nacional, uma parcela da crítica acadêmica dividiu-a em pólos antagônicos. Quem não é moderninho, é superficial. E ponto final. Rejeitamos esse maniqueísmo que produz distorções, afasta leitores e joga sua névoa sobre o mundo literário.

Pedro Drummond
Luiz Antonio Aguiar
André Vianco
Luis Eduardo Matta
Felipe Pena
Eduardo Spohr
Estevão Ribeiro
Thomaz Adour
Barbara Cassará
Halime Musser
Helena Gomes
Raphael Dracon
Ana Cristina Rodrigues
Sergio Pereira Couto
Delfin
Vera Assumpção
Moisés Liporage
Humberto Moura Neto
Martha Argel


(e convidados)





segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Crônica da semana passada no Jornal do Brasil

Solano e Luana

Nada como um amor juvenil. Os fiapos de pêlo surgindo no rosto, os hormônios transbordando, a insegurança perene. O amor juvenil é sincero, úmido, urgente. Amor de peixe, com as guelras inundadas e o oceano pela frente. O amor juvenil não precisa de explicação, é autorreferencial, um vício desde o início, como diria o Caetano. Mas o melhor dos vícios, cuja dependência é tudo que queremos.

É verdade que Luana já não era tão juvenil assim: tinha o cabelo pintado, um passado de guerrilha e já espalhava creme da Victoria Secret’s por todo o corpo. E ele... Bem, ele era ainda mais velho, com uma barba cerrada que a machucava, algumas rugas de expressão e boas histórias pra contar. Mas não tinham dúvidas: eram ambos adolescentes, passionais, loucos. Eram ambos irresistíveis um para o outro.

Impossível não lembrar das vezes em que andavam de mãos dadas pelas ruas de um certo balneário. Em uma delas, durante um passeio pela orla, ele a pediu em casamento. O dia estava feio, nublado, avesso a qualquer tipo de romantismo. Mas o garoto primava pela criatividade, alimentada pela paixão hormonal e por um senso de oportunidade inigualável. Luana nem imaginava que estavam comemorando cento e quarenta dias de namoro. Para ela, só havia comemorações em datas redondas: um mês, um ano, quem sabe uma década. Contar os dias era impossível.

O adolescente apaixonado pensava de outra forma. Não enxergava pieguice em nenhuma manifestação amorosa. Para ser completo, o amor precisava ser ridículo, precisava de extravagâncias e, acima de tudo, precisava de testemunhas. No meio da caminhada pelo calçadão, ele a convidou para almoçar. Um convite estranho para o horário: onze e meia da manhã. Mas ela não recusou, nem mesmo quando recebeu a pequena faixa de pano e o pedido para que vendasse os olhos.

- O que é isso, Solano?
- Confia em mim, meu amor.

Andaram por mais alguns metros até uma pequena escada que levava à praia. A areia penetrou nas sandálias, deixando-a ainda mais intrigada. Vamos almoçar à beira-mar? Calma, estamos chegando. Não chovia, mas um vento frio entrava pela lateral da blusa, arrepiando a pele já umedecida pela ansiedade. Os passos lentos no solo fofo tornaram o trajeto um pouco mais demorado que o previsto. Vendada, Luana aproveitava os outros sentidos para se localizar. Ouvia poucas vozes. O cheiro de maresia ficava mais forte a cada passo, embora se misturasse com um aroma incomum, de difícil identificação. Um gosto doce tomava conta do palato, talvez influenciado pelo tal aroma desconhecido.

Quando sentiu a água bater nos tornozelos, Solano pediu que parasse de andar. Apesar do vento, o mar estava calmo, como se fosse um dia de verão. O namorado a pegou pelos ombros, posicionou-a em direção ao horizonte e só depois permitiu que retirasse a venda, o que ela fez com toda a calma do mundo, saboreando o momento. Os olhos demoraram alguns segundos para se acostumar com a luz, tornando a cena ainda mais intensa, já que a imagem apareceu paulatinamente, como um espetáculo que se descortina para o espectador.

Cento e vinte barcos de papel machê navegavam em círculos. Nas pequenas velas que os impulsionavam era possível ver o nome dela escrito com letras góticas, além de um coração estilizado que o envolvia. Os amigos do casal, todos adolescentes, aplaudiam o gesto romântico, do qual haviam sido cúmplices e artífices. Dos dedos de Solano surgiu uma linha de naillon presa a um dos barquinhos, que estava próximo da areia. Ele puxou o fio lentamente, em movimentos sincronizados, para não derrubar a embarcação. Na ponta do mastro, havia uma aliança de ouro cuidadosamente amarrada, cuja gravação no interior trazia o nome de ambos e um sinal místico que só eles compreendiam. Não foi preciso dizer mais nada, apenas ouvir a resposta.

- Eu aceito.

Os amigos ergueram os copos em torno da gigantesca toalha estendida na areia, cujos isopores com cerveja dividiam espaço com doces e salgados comprados numa padaria do bairro. As lágrimas eram coletivas.

Depois do almoço, Solano colocou o isopor na cabeça e partiu com a namorada. O amor juvenil precisava de atitude.

O amor juvenil precisava ser carregado.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Conto de Marcela Ávila

O LUGAR DA LUA

Naquele dia, saiu de casa toda bonita, com o cabelo solto, o vestido comprido rodado, de salto alto. A procura terminara e estava pronta para o encontro. A cor da roupa não podia ser outra se não o prateado. Era por ele que o encontro seria definitivo. E nele se entregaria. Marcaram às vinte e duas, na porta do clube. Nem cedo, nem tarde. A hora perfeita. A maquiagem a deixava linda, os olhos brilhavam cheios de esperança de nunca mais ter que voltar. Deixara tudo preparado antes de sair: o copo na mesa, o café pronto na garrafa, o pão na cesta e as panelas no fogo. A sua ausência nem seria notada, fazia sempre, todos os dias, o mesmo ritual. Sairia despercebida. Como sempre, ele nunca repara nela e não seria agora com tudo do esmo jeito que notaria sua ausência. E quando a notasse já estaria bem longe daquele inferno.
O vestido comprara à tarde, na loja da esquina. O brechó a consumia todos os dias quando vinha do supermercado com o vestido colocado na vitrine. O namorava há semanas. Era um vestido no joelho, todo prateado e com anágua, ficava bem rodado do jeito que sonhara. Economizou o tanto que pode e conseguiu o preço suficiente que desse no tamanho do dinheiro que tinha. A matemática ainda estava dentro dela. Fazia tantos anos que não estudava mais, que havia aprendido o básico, pelo menos não passaria vergonha. Sabia falar, escrever e adorava ler revistas de moda. Apertava ao máximo as compras do supermercado e da feira e comprava a revista de moda semanal. Era o mínimo de prazer que se permitia. Até encontrá-lo na praia. Um homem distinto, bem afeiçoado e tão gentil. Chegou perto dela, enquanto olhava a lua. Ficou sem graça, não sabia onde colocar as mãos, o que dizer, parecia uma empregada e ele o patrão. Contudo, ele percebeu que, por trás daquela figura simples e humilde, havia uma mulher pronta para se apaixonar. Ele falava bonito, cheio de palavras doces e ela sorria feliz por conversar com alguém. Em casa, só servia para fazer as tarefas diárias. A conversa nem existia na cama. Com o moço bonito não era assim, trocaram assuntos diversos. Ele gostou dela. E ela se encantou pela elegância, pela atenção. Os dois adoravam dançar, ele a convidou para o baile no clube. Ela aceitou. Afinal, há anos não dançava. Marcaram um novo encontro na porta do clube. Sabia que estava errada, não podia trair o marido. Mas quem disse que o trairia.
Nem pensou duas vezes, no dia seguinte passou no brechó e comprou o vestido. E, agora, estava ali em frente ao espelho se admirando. Há tempos não se via. O espelho só servia como reflexo da vida sem graça. Até conhecê-lo. Tudo mudara. As cores voltaram e a palidez ficou de lado. Os olhos brilhavam e o sorriso com os lábios vermelhos a mostravam provocativa. Nunca se achara bonita, exceto naquele dia. A vida definitivamente valia a pena. Não mais duvidaria. Só lembrava do sorriso do moço bonito.
A lua estava prateada do jeito do desejo dela. Nascida para brilhar e pronta para o amor. O único destino capaz de encontrá-la seria o mesmo do dele. Ela o conhecera junto às batidas das ondas nas pedras e com a lua nos céus. Em todos existia a mesma lua. A lua mostrou que seriam um, e viveriam sob o lugar da lua prateada, ao som da melodia das ondas.
Já estava atrasada, não era elegante chegar ao encontro depois da hora. Saiu do quarto, sem antes não deixar de pegar a bolsa, correu para a cozinha e viu tudo no lugar como deixara. A toalha posta, o prato da sopa, a garrafa térmica junto à cesta de pão com a manteiga do lado. Tudo do mesmo jeito que fizera todos esses anos. Do jeito que ele gostava e exigia. A mulher existia para servi-lo e ela nunca se recusou. Obedeceu até conhecer o moço das pedras debaixo da lua. Olhou-se novamente no espelho da sala, ajeitou o cabelo, passou um pouco mais de batom, esticou o vestido, sem deixar dobras, pegou a chave e bateu a porta. Para aquele inferno não voltaria, a certeza vinha da mesma forma que descobrira pela primeira vez que era bela.
Ao sair do prédio, sentiu frio, o vento soprava devagar, mudanças no movimento do mar. O cheiro não a enganava. No entanto, nada seria capaz de fazer com que voltasse. O salto alto abria o caminho e a fazia andar com firmeza. Corria, o vento soprava, os cabelos se despenteavam e ela permanecia linda e pronta para encontrá-lo.
Só não contava com o carro na contramão. O vestido prateado subiu aos ares e caiu colado ao corpo no chão. O encontro não existia mais, a beleza se esvaíra em vermelho pelo bueiro. Não podia ser, escolhera o vestido prateado. Não fazia sentido, o encontro fora desfeito, não mais veria o movimento das ondas batendo nas pedras. Ele não existiria mais dentro dos olhos dela. E a lua? Quem sabe poderia pedir para morar dentro dela? Dependia Dele. E, com Ele, nunca contara. Aos poucos, a lua foi sumindo e só permaneceu preso aos olhos dela o preto do vazio.

Conto de Halime Musser

E se...

A sensação era patética e, no mínimo, engraçada, ela teve que admitir. Havia sempre se orgulhado de ter sido uma boa menina e, agora, vejam só, olhava para ele deitado ali ao seu lado e não sentia qualquer vestígio de culpa. Era óbvio que ela tinha sofrido. Talvez ninguém jamais saberia tamanho conflito que ela havia sentido, o medo de magoá-lo, a dúvida que a remoia por dentro: e se der tudo errado?
Era impossível negar que ele não a enxergava mais fazia tempo. Tal fato, ela perguntou a si mesma muitas vezes, dava a ela o direito de não ter sido fiel à promessa de amá-lo somente e a mais ninguém? Ele não havia cumprido o juramento de dois anos antes, em que prometera fazê-la sempre feliz e completa. E o que havia restado, naquela cama, naquela noite? Ele era apenas um desconhecido.
Claro, era claro que existia o medo de perdê-lo. Não se imaginava sem ele, não podia, não tinha certeza de que conseguiria por conta própria. Por outro lado... Ela virou-se de costas para ele, fechou os olhos e os apertou com força. Ela era mulher, era jovem, sempre fora desejada. Por que ele não a desejava mais? Por que a culpava por suas péssimas escolhas? Ela precisava de um toque carinhoso, de um olhar apaixonado e, quando o outro apareceu, disposto a confortá-la, falando tudo aquilo que ela desesperava-se por ouvir... Como ela tentou evitar, meu Deus, como ela quis se manter longe e distante. Mas não é assim que funciona, certo? O destino pregou-lhe peças e, insistentemente, colocou o outro em seu caminho. Irresistível.
Ela abriu os olhos e admirou a escuridão. As sombras das árvores projetadas nas paredes brancas do quarto, tornando aquela realidade ainda mais parecida com um filme de terror. Uma lágrima pesada escorreu, percorrendo lentamente o caminho do olho até o queixo, mas não havia mais a dor insuportável nas entranhas. O fato fora, sim, consumado, mas não havia culpa alguma em tê-lo feito. A única culpa era de não ter sido capaz de arrepender-se, de tê-lo desejado mais, por ter se deliciado tanto nos braços do outro. O jeito como ele a puxou para si mesmo e respirou em seu ouvido. Ah. Aquele beijo quase roubado, o frio adolescente na barriga, o sorriso que não se desmanchava. "Você parece tão feliz", ele disse quando ela voltou do primeiro encontro com o outro. Então, as perguntas voltavam ao ponto inicial.
Por que ele parara de desejá-la? Por que permitiu que ela se apaixonasse por outro? Aquele não havia sido o contrato inicial. E tudo aconteceu bem embaixo do nariz dele! Que tipo de homem pede a um concorrente em potencial que cuide de sua mulher, justificando-se de que precisa de tempo livre para ganhar mais dinheiro? O tipo de homem que pede para ganhar um par de chifres, ela riu amargamente para si mesma diante de tais pensamentos.
Ela era tão nova, mas sentia-se tão desperdiçada, tão infeliz. Como ele nunca havia entendido por que ela soltava suas mãos quando o outro aparecia? Era tão óbvio. Ele perguntava, vez ou outra, por que ela vivia sorrindo pelos cantos. Cada pergunta gerava dentro dela um ressentimento maior, porque ele era totalmente incapaz de se dar conta da realidade. Ela tinha outro e estava perdidamente apaixonada.
Mais uma vez, virou-se de bruços. Estava incomodada, levantou um pouco a persiana branca e admirou o céu negro daquela madrugada. Adorava observar o balanço das árvores, ouvir o farfalhar das folhas desidratadas pelo frio em excesso, e percebeu-se ainda mais pensativa no amante. Amante. O primeiro encontro dos lábios, como ela se sentiu boba e menina! Era como se nunca tivesse beijado alguém antes. Fechou os olhos sem se dar conta e sorriu. A lágrima solitária e fugitiva secara e restou apenas o desejo urgente de vê-lo. Mas teria de ser naquele momento, agora, de qualquer forma, e, nossa, uma corrente elétrica invadiu seu corpo, tão intensa, que ela teve medo de gemer alto. Respirou fundo, virou-se de barriga para cima, fitou o teto. As sombras das folhas formavam figuras disformes.
Como aquilo podia ter acontecido com ela, uma menina tão boa. Quem diria que ela se tornaria alguém tão má? Virou a cabeça, olhou para o corpo adormecido ao seu lado, um homem que não lhe trazia mais nenhuma emoção forte, a não ser constante frustração. Esticou a mão, tocou-lhe levemente as costas com a ponta dos dedos. Um pedaço morno de carne. Não estava no script da história deles que chegariam a este ponto. Ele a traíra primeiro quando começou a privá-la de tudo que prometera no começo? Passou as mãos pelos cabelos, virou-se novamente de lado, suspirou. Sentia-se exausta. Fechou os olhos. A pergunta que não a deixava em paz voltou a martelar: teria sido muito pior ter traído os próprios sentimentos, não? Não suportaria passa resto de seus dias se infernizando com o fatídico e se... Sentia-se louca, devia mesmo estar. Mas, ali, naquela madrugada, não tinha mais forças para concluir nada. Mais uma vez, fechou os olhos e, dessa vez, deixou-se ser vencida pelo cansaço.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A capa do meu novo romance



O livro já tem dois lançamentos marcados:

Dia 18 de março, às 19h, na livraria Travessa, do Shopping Leblon, Rio de janeiro.

Dia 25 de março, às 19h, na livraria Saraiva, do Shopping Center Norte, em São Paulo, durante evento com o escritor André Vianco.

Em breve, confirmo as datas dos lançamentos em Belo Horizonte, São João Del Rey, Curitiba, Brasília, Porto Alegre, Belém, São Luís e Florianópolis.

Qualquer sugestão para outra cidade será bem-vinda.

Nos próximos posts, trechos do romance.

Espero vocês nos lançamentos.

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