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Escritor, psicólogo, jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Literatura pela PUC-Rio, Pós-Doutor em Semiologia pela Université de Paris/Sorbonne III e ignorante por conta própria. Autor de doze livros, entre eles três romances, todos publicados pela ed. Record. Site: www.felipepena.com

terça-feira, 26 de junho de 2012

Resenha do livro Minda-Au


Um autor em busca de tradução



Os homens sem alma não sorriem. Os homens sem alma carregam pastas. Os homens sem alma caminham pela Rua XV, em Curitiba, cidade que serve de cenário para os sete contos do livro de Marcio Renato dos Santos, cuja carreira no jornalismo e na crítica cultural já é conhecida em todo país.

            O autor mora na capital paranaense e a expressão “homens sem alma” é cotidianamente repetida por ele, como um mantra, em suas conversas com amigos e colegas de redação. Duas informações que já seriam suficientes para identificar o teor autobiográfico de seus textos. Mas ele é ainda mais incisivo. O tom confessional começa no próprio título: Minda-Au foi a tradução que encontrou para a palavra dromedário quando tinha menos de uma ano de idade.

            A partir desta palavra, ele diz que começou a se tornar Marcio Renato dos Santos. Ou seja, foi através da linguagem que começa a ter identidade. Ou, pelo menos, a buscar essa identidade. O que fica ainda mais evidente nas influências literárias de seus contos. Em “O espírito da Floresta”, por exemplo, o realismo fantástico o aproxima de uma determinada vertente da literatura latino-americana. Já em “De teletransporte nº 2”, Marcio subverte a pontuação, ignorando vírgulas e parágrafos, em um claro tributo a José Saramago.

            Mas é no conto “Ali, agora”, o último do livro, que o autor se revela com mais intensidade, ao homenagear seu mestre, um escritor cujo nome não é mencionado. Só sabemos que ele morreu de câncer, com mais de sessenta anos. E que, além de habitar a mesma Curitiba, traduziu-a em palavras.

            Minda-Au é o livro de um autor em busca da mais difícil das traduções. Seus contos ultrapassam a metalinguagem e as estratégias narrativas, pois não há nada mais complexo do que traduzir a si mesmo.

E é preciso muita coragem para tentar.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Geração subzero


        As coletâneas costumam ser pretensiosas e elitistas. A revista Granta, por exemplo, teve a pretensão de apresentar os vinte melhores autores brasileiros com menos de quarenta anos. Mas que critérios definem os melhores? E quem define esses critérios? Figurinhas carimbadas pela “mídia especializada” e referendadas pelas panelas literárias levam vantagem nessa escolha?

            Talvez a atitude mais honesta seja assumir que a escolha é pessoal, como fez o crítico Nelson de Oliveira, organizador do livro Geração 00, que, ainda assim, manteve o caminho da pretensão, ao tentar reunir os melhores autores de uma década.

            Esses autores não estão preocupados com os leitores, mas apenas com a satisfação da vaidade intelectual, baseando suas narrativas em jogos de linguagem que têm como objetivo demonstrar uma suposta genialidade. É estranho que boa parte deles manifeste preocupações sociais e tendências políticas progressistas em suas entrevistas, enquanto suas práticas profissionais os levam a uma torre de marfim representada por feiras e festivais que os mitificam como ícones da literatura para aqueles que também se enxergam como elite.

            Felizmente, há uma massa de leitores no país que ignora essa tentativa de forjar novos cânones para a literatura. É um público que se preocupa apenas com o prazer da leitura, com a relação afetiva com o livro, com as reflexões que uma história bem contada pode provocar e com a socialização dessas histórias e dessas reflexões. Sim, a socialização, pois aquele que tem prazer na leitura sempre recomenda o livro ao amigo mais próximo.

            É para esse leitor que a coletânea Geração Subzero foi organizada. Aqui estão vinte autores congelados pela “crítica especializada”, mas adorados pelo público. Este livro não é uma antologia. Os contos e autores não têm a pretensão de figurar entre os melhores de sua geração ou estilo. Tampouco foram escolhidos exclusivamente pelo organizador da obra, que apenas observou os nomes comentados em redes sociais, blogs, salas de aula e grupos de discussão cujo objeto era simplesmente o prazer da leitura, além de ouvir os signatários do Manifesto Silvestre, um documento que defende o entretenimento como conceito de valor na literatura.

            Todos os autores aqui reunidos cederam seus direitos autorais para a ONG “Ler é dez, leia favela”, que forma leitores no Complexo de favelas do Alemão, no Rio de Janeiro. Como Silvestre da Silva, personagem de Camilo Castelo Branco no livro Coração, cabeça e estômago, os escritores da Geração Subzero colocam a cara na vidraça e esperam pelas pedras e flores. Mais pedras do que flores. Os trocadilhos vão causar indigestão e os intelectualismos, cefaleia. Mas o coração não será atingido.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

A saudade é minha culpa

As frases não ditas são eternas. Não era o que eu queria dizer. Nem o que o ela teria dito. Mas já estava lá, escrito, como se fosse para nós. O que ficou de você em mim foram os fragmentos, polímeros, fractais, resíduos.
E o teu queixo no queixo do meu filho. Teu genoma em cada livro. Tua face em cada linha. Teu sangue em cada frase. Minhas frases, tuas digitais, e teu queixo, teu texto. O que você lê agora é o que resta nos olhos do rufião. Sobrevivi a expensas de galanteador, mas não voltei a me encontrar. Depois de você, todas tinham o mesmo defeito: nenhuma delas era você.
Nunca nenhuma delas será você.
Os outros são nossos narradores. Não há fuga possível para o discurso alheio que nos constrói. Estamos à mercê dos advérbios que não queremos, dos adjetivos que não merecemos, dos pronomes que foram trocados (de propósito). Nossa história não nos pertence. Não temos tempo. Tempo é expectativa. É o portão de ferro da angústia.
Mas se você estivesse aqui, tudo seria diferente! Se você estivesse aqui, pela oitava e única vez, prometo que tudo seria diferente. Se você estivesse aqui, eu ouviria os comentários sobre meu egoísmo, concordaria com as mudanças, aceitaria as críticas, não me importaria com a verdade.
Se você estivesse aqui, o teu egoísmo não seria necessário.
Se você estivesse aqui, alugaríamos um apartamento bem pequeno para que os desencontros acabassem se encontrando.
Se você estivesse aqui, chegaríamos no mesmo passo, enfrentaríamos a chuva, dividiríamos a capa e a marquise.
Se você estivesse aqui, comeríamos no mesmo prato, dividiríamos a carne, beberíamos o licor no copo de vinho.
Se você estivesse aqui, levaria teu avô ao médico, cuidaria do teu pai, educaria teu irmão e te daria um filho.
Se você estivesse aqui, arrumaria um quarto pra tua mãe, fingiria que gosto dela e ainda acreditaria nos elogios.
Se você estivesse aqui, dormiríamos até mais tarde, com a cortina fechada e o mundo lá fora, sem importância.
Se você estivesse aqui, passaria o creme nos teus pés depois de lixar tuas unhas pra te livrar da solidão.
Se você estivesse aqui, eu me sentaria na beirada da cama por duas horas, com o paletó fechado, enquanto você escolhe o vestido da festa.
Se você estivesse aqui, puxaria o zíper até o final das costas, deixando minha respiração no pescoço perfumado.
Se você estivesse aqui, sairíamos pela noite da cidade iluminada, veríamos o filme do cineasta desconhecido, descobriríamos um restaurante íntimo, escolheríamos o prato da casa, cruzaríamos a ponte e veríamos o barco pela proa.
E tudo mais. Tudo que você sempre quis:
Ouvir Indian Maracas, do Pelv’s. Dançar na batida do Bob Sinclair. Degustar o macarron da esquina. Ler a bíblia do Roberto Bolaño. Ver a exposição do Albuquerque Mendes. Assistir à montagem do Cyrano. Ir ao show do Radiohead e não se conter na quarta música da lista. I wish I were special.
Se você estivesse aqui, eu teria evoluído.
Mas você não está.
Quando foi embora, deixou-me a culpa e o atraso.

Escritor

terça-feira, 5 de junho de 2012

Resenha do livro "Um erro emocional"

Numa noite inspirada, durante a Feira Literária Internacional de Paraty de 2009, o escritor português António Lobo Antunes resumiu o que pensava sobre a recepção de sua obra pelo público com uma pequena frase de efeito: “o nome do leitor é que deveria vir na capa do livro, não o do escritor.”
Na plateia, o escritor brasileiro mais premiado do ano anterior buscava um diálogo imaginário com seu colega luso: “claro que sim, pois o leitor é que realiza o livro,” respondeu Cristóvão Tezza, vencedor dos prêmios Jabuti, São Paulo, APCA, Portugal Telecom, Bravo! e Zaffari & Bourbon de literatura com o romance O filho eterno, uma obra declaradamente autobiográfica que tem na fluência dramática seu grande mérito narrativo.
A preocupação com a resposta do leitor parece presente em quase todos os livros de Tezza. Não apenas pela já referida fruição, mas, também pelo flagrante desejo de contemplação que permeia seu texto. Consciente de que “os escritores são animais agonizantes e que se deve ter cuidado ao tocá-los”, como diz a personagem principal de seu mais novo romance, o autor catarinense escancara essa relação de dependência em seus diálogos, mas constrói elipses estratégicas para que eles, os leitores, possam grafar o nome no gigantesco espaço acima do título.
Nesse sentido, Um erro emocional é um livro para ser assinado por quem o lê. O enredo trata da conflituosa relação entre um escritor e sua leitora, dois seres que, aparentemente, habitam mundos diametralmente opostos, mas cuja interdependência permite uma aproximação pela própria história que os conduz. Paulo, o escritor, acredita ter encontrado a leitora ideal. Beatriz, a leitora, idealiza o autor através de seus livros. E não é disso que trata a literatura, ou melhor, a própria vida: idealização?
Os personagens sabem que os sentimentos carregam a mediação de conceitos e juízos de valor. Então por que não se deixar mediar pela palavra, a mãe de todas as mediações? É assim que os personagens se tornam cúmplices e revivem seus fracassos amorosos, suas frustrações e seus sonhos interrompidos.
Mas não se engane: este não é um romance metalinguístico. Embora tenha escolhido um escritor como personagem principal e até cite alguns autores modernosos durante o livro, Tezza não abre mão de sua marca principal: a história bem contada. Novamente, é o universo dramático que enreda a trama, levando o leitor a se tornar testemunha privilegiada dos acontecimentos. E isso é feito através de uma elaborada carpintaria literária.
Pra começar, os personagens não falam entre si. Entretanto, o que poderia parecer um recurso banal ganha originalidade na construção narrativa do autor. Mais do que explorar os diálogos interiores e discursos indiretos, Tezza nos conduz por atalhos abertos pelos coadjuvantes. São personagens de fundo - como Claudia, Cássio, Doralice e Donetti, por exemplo - que nos revelam as ações dos protagonistas, Paulo e Beatriz.
Tal configuração estilística talvez seja consequência da maneira como o romance foi se formando. Um erro emocional seria apenas um dos contos de uma antologia encomendada pela editora Record. Mas a complexidade da personagem Beatriz fez com que o autor esticasse a trama. A partir daí, ele costurou a relação com os demais personagens, cujas biografias foram construídas no interior do conflito principal.
Se fosse outro escritor, o resultado poderia parecer volátil. Mas, ao lembrar que a obra só se completa na recepção (uma característica ignorada por muitos autores), Cristóvão Tezza nos entrega um livro perturbador, original e com lacunas bem dosadas, deixando para o leitor a prazerosa tarefa de se embrenhar pelas costuras e escrever o próprio nome na capa.

Algumas capas