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Escritor, psicólogo, jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Literatura pela PUC-Rio, Pós-Doutor em Semiologia pela Université de Paris/Sorbonne III e ignorante por conta própria. Autor de doze livros, entre eles três romances, todos publicados pela ed. Record. Site: www.felipepena.com

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

A garrafa - conto de Ana Cristina Melo publicado na Revista ficções 19

Aquela teria sido uma manhã como qualquer outra, se não fosse a primeira depois de Jussara me abandonar, de eu ter perdido meu emprego e de ter descoberto que eu estava preso dentro de uma garrafa. Não era somente eu que estava preso ali, mas todo o meu quarto. Abrindo a porta ou a janela, deparava-me com o vidro grosso, fumê, que me impedia não só o ir-e-vir, como me restringia a visão completa do mundo. Lamentei meu quarto ser de fundos, pois assim nem podia gritar a quem passasse na rua. Gritar poderia, e o fiz, mas me pareceu que as palavras batiam no vidro espesso e retornavam ecoando para dentro de mim mesmo. O teto não mais existia. Olhava para cima e encontrava o vidro se prolongando até se afunilar no gargalo, e bem lá no topo, uma rolha que o fechava hermeticamente. Não havia dúvidas, estava preso dentro de uma garrafa. Perplexo, sentei na cama. Olhei em torno. Nem meu quarto era o mesmo. Muitos dos meus móveis haviam sumido. A pequena estante com meus livros, o computador, o armário. Onde estariam minhas roupas? Mas se bem que pensei: o que faria eu com roupas, se nem podia deixar aquele lugar. Me sobrara a cama, uma mesinha de cabeceira e um pequeno sofá, colado à janela. Tentei lembrar do momento em que me deitei, mas não consegui. A última lembrança que tinha era da vontade incontrolável que tive de dar fim ao sofrimento. Dos móveis da sala que arrebentei, tentando expulsar aquele berro preso no peito. De alguém tocando meu ombro... e de mais não me lembro. Vasculhei as gavetas na busca de uma chave, algum objeto cortante que pudesse arrebentar aquele vidro, mas estavam vazias. O sofá pesava muito e não conseguia erguê-lo a fim de jogá-lo contra a porta. Pouco adiantaria arremessá-lo contra a janela, que fiz questão de cercar com grades, trazendo para aquela cidade pequena o hábito de clausura impregnado em mim, fruto das mazelas da cidade em que nasci. O quarto também não tinha mais a cor salmão que havia sido escolhida por Jussara. Estava todo branco. As paredes, a cama, o colchão, os lençóis, a fronha, a mesinha, o interior das gavetas, o sofá... aquele excesso de claridade estava me sufocando, corri e grudei o rosto no vidro fumê, necessitando de alguma escuridão, para poder respirar, me salvar... * Tudo começou quando, diante de uma crise de pânico, deixei o desvario do emprego no centro financeiro do país e me mudei para o interior. Não uma cidade completamente perdida no mapa, daquelas em que todos se conhecem, pois convergem a um mesmo ponto ─ a praça central, com o seu coreto. Não, uma cidade com carros, com pessoas, com ruas, com gente que se conhece e outras tantas que não, com novos ares, novas perspectivas. Ali, por sorte, consegui um emprego de vendedor numa concessionária de veículos. Logo me entrosei com os colegas e saíamos pelas noites, despejando o tempo livre e a cerveja nos bares que ficavam abertos até tarde. Foi num desses lugares que conheci Jussara. Ela chegou no banco de carona de um conversível, discutia calorosamente com o homem ao volante. Até que ele a esbofeteou. Não podia assistir, impassível, àquela cena. Fui tomar satisfações, apesar dos esforços de meus companheiros de que não valia a pena, de que ela não valia a pena. O cara, muitas mãos maiores do que eu, saiu do carro e mandou que eu não me metesse. Mas o sangue italiano, de muitas gerações atrás, não se conteve. Um soco foi suficiente para me deixar no chão. Não mais ele fez. Entrou no carro, e ouvi o cantar de pneus que o levou para longe. Eu é que deveria tê-la protegido e quando vi, ela é quem cuidava de meu nariz arrebentado. Meus amigos tentaram me resgatar do chão, mas preferi ficar nos braços daquela morena de olhos claros. Me deixei carregar para casa, onde, mal passando da porta, terminamos a noite em minha cama. No dia seguinte eu era o mais feliz dos homens. Meus amigos alertavam-me que os poucos que a conheciam não deixavam que a fama de Jussara tivesse boa cotação. Achei que tinham inveja de mim, pois, ultimamente, sobrava para eles apenas algumas barangas que passavam à frente da loja, deixando cair lenços, carteiras e os decotes, ou as mulheres da Rua das Passadeiras, que aliviavam as aflições masculinas em troca das comissões que eles ganhavam na semana. Hoje vejo que me precipitei, mas não correram quinze dias, quando Jussara se mudou lá para casa, com mala e lingeries. Então, logo os problemas começaram. Diariamente, ao chegar em casa, não a encontrava. Ela voltava tarde da noite e quando eu ameaçava reclamar, alegava que eu a deixava sozinha o dia todo, que não lhe dava dinheiro, que lhe negava atenção. Tentava me defender, dizendo que pouco ganhava na loja, que precisava trabalhar para conseguir esse pouco e que poderíamos sair à noite – se eu a encontrasse em casa. Aquelas discussões eram vãs. E quando nos cansávamos, terminávamos na cama, e tudo mais era esquecido. Muitas vezes, eram madrugadas inteiras em que me via tentando lhe provar que ela era importante para mim. Madrugadas que me deixavam arrasado pela manhã e sem forças de convencê-la de que eu precisava ir trabalhar. Logo começaram os atrasos; muitas vezes, as faltas. Eu, que era um funcionário exemplar, comecei a ser advertido. Já não conversava com meus amigos, pois não aceitava que eles criticassem minha mulher. Já não saía aos bares, e quando o fazia, acompanhado de Jussara, podia sentir os cochichos às nossas costas. Sentindo-me um trapo que tentava se manter em pé, não tinha forças para convencer nenhum cliente. As vendas rarearam e com elas, as comissões. Claro que o dinheiro entregue à Jussara também rareou, o que não podia ser dito das brigas. Quanto menos dinheiro, mais discutíamos. Porém, em algumas vezes, Jussara não mais voltava tarde, simplesmente não voltava. Então, minhas madrugadas não eram na cama com ela, mas vasculhando a cidade à sua procura, até o amanhecer. Sentia-me satisfeito nas noites em que ela retornava e não mais perguntava onde estivera, querendo apenas senti-la entre os meus lençóis. Já não era ela que me pedia provas de amor, era eu que precisava dessas provas. Não sei quem causou o quê: se Jussara me fez perder o emprego ou se perdi Jussara porque fui posto na rua, mas tudo aconteceu no mesmo dia. Uma tarde fui chamado à sala de meu gerente e ele me comunicou que eu estava despedido. Minhas contas já estavam feitas e o pouco que eu tinha a receber, descontadas as faltas, estava num envelope. Antes de chegar em casa, parei num bar, e acho que deixei boa parte daquele dinheiro em incontáveis copos de cerveja. Entrei em casa já com a lua alta. Era uma das noites na qual eu devia ter sido premiado, com a presença de Jussara. Talvez por ser o dia do pagamento, ela me esperava com uma lingerie especial, pronta para me alegrar a madrugada. Mas quando viu meu estado, reclamou, talvez com razão. Brigamos feio. Eu não estava querendo conversa e muito menos transar. Mas Jussara não cedia, nem no desejo, nem nas cobranças. Queria sexo e o resto do dinheiro. Tanto ela me perturbou que, quando percebi, encerrava nosso ciclo da mesma forma que começou: dei-lhe um tapa no rosto, selando a violência do início de nossa história. Ela me devolveu o gesto com um empurrão e bati com a cabeça na estante. Tonteei e não conseguia me levantar, para impedi-la de passar por mim com a mala e com o envelope. Gritei seu nome e depois de muito tempo, quando consegui me colocar de pé, já era tarde. Sabia que ela não voltaria. Tive um acesso de fúria, passei pela cozinha, pela sala, quebrando os móveis e as louças. Acho que só não tive coragem de ir até o quarto. Ali era o nosso refúgio, o meu altar de sacrifícios. Em meio a essa fúria, que misturava meu sangue, meu suor e minha vida, senti que alguém entrava em casa e me tocava no ombro. Depois, nada mais me lembro.
Deitado na cama, encarando sobre a minha cabeça aquela rolha, lembrei do amigo João, o primeiro com quem me entendi na loja. Em todos esses meses, ele foi o único que não me virou as costas. Apenas deixou de me dizer que Jussara não prestava, mas continuava a me sussurrar que contasse com ele, quando eu viesse a precisar. E agora precisava, mas não tinha como lhe pedir ajuda. Não havia telefones no quarto, eu estava apenas com um pijama branco, sem celular, sem nada. Podia jurar que a mão que me tocara o ombro no dia anterior havia sido a dele. Provável. Ao sair da loja, ele se mostrara preocupado com o meu futuro. Fiquei horas encarando a rolha, imaginando se eu teria alguma forma de chegar até ela, até que vi uma agulha transpassá-la, e do pequeno furo cair um líquido viscoso, transparente, que ia pingando, gota a gota, no centro do quarto. Levantei-me, agitado, e gritei, pois se algo era introduzido naquela garrafa, era porque alguém estava do lado de fora dela. Gritei, gritei, esmurrei o vidro da janela, o vidro da porta, mas não percebia nenhum movimento. O fumê parecia escurecer ainda mais, enquanto o quarto parecia ficar cada vez mais branco. Esmurrei as paredes, desfiz o colchão, estraçalhei o travesseiro; lembrei de pegar as gavetas e as usei para esmurrar a porta, mas nenhum risco elas conseguiram fazer, e se desfizeram em minhas mãos, como se fossem feitas de papel. Os pingos que mal manchavam o chão começaram a criar uma poça, e eu fui me sentindo mais e mais sufocado, parecia que o ar ali rareava, e as paredes brancas, e a poça se tornando um pequeno rio, e as paredes começaram a se fechar, reduzindo o meu espaço, e as gotas pingando da agulha, e o chão se enchendo de líquido, subindo pelas minhas pernas, e as paredes diminuindo, e o líquido já na minha garganta, e eu submergindo...
Abri os olhos e não pude me mexer. As paredes ainda eram brancas. Mas podia vislumbrar um raio de sol que vinha da janela e iluminava meu amigo João, parado ao lado da minha cama, junto de um enfermeiro.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Carta Aberta para Caetano - Crônica publicada no Jornal do Brasil

Querido Caetano, todo mundo sabe que você não gosta do cara, mas sua mãe gosta. Só que há um detalhe importante esquecido nessa inversão da lógica do Chico: aqueles que a utilizam para defender o presidente, na verdade o estão atacando. Não entendeu? Tudo bem. Às vezes, eu também não entendo o que você diz, mas, mesmo assim, insisto nas entrelinhas. Então, permita que eu explique. Antes, porém, devo me apresentar.

Sou professor da Universidade Federal Fluminense, no Rio, onde leciono jornalismo e oficinas de literatura. É uma escola pública, daquelas que têm paredes descascadas, cadeiras quebradas e lousas destruídas pelo tempo. Há dois anos, também trabalhava como comentarista político na emissora estatal, a TV Brasil, mas fui censurado por criticar o governo e acabei saindo do programa que fazia.

Assim como você, também votei chorando no operário do ABC. Em 1989, carregava bandeiras do partido e enchia meu carro de adesivos, além de entoar aquele jingle de campanha gravado por artistas e intelectuais. Era o homem lá e eu aqui, emocionado, estudando Marx e Marcuse, e me preparando para, um dia, também influir na política.

Cômico e trágico, né não, Caê? Doce ilusão de um doce bárbaro que se achava a vanguarda do universo e ainda virou professor porque queria mudar o país e o mundo. Fala sério, meu rei: vinte anos depois, você ainda acha que os intelectuais e artistas influenciam na eleição? Temos alguma missão a cumprir nesse mundo de maletas e cuecas? Somos referência para os que votam?

Então por que todos ficaram ruborizados quando o Aderbal chamou a moça de peruca de futura presidente? O sujeito apenas declarou o voto, nada mais. Qual é o problema? Não haverá nenhum séquito de eleitores se guiando pela opinião divina de um dramaturgo. Aliás, quem montou esse drama não entende nada de teatro.

Dramáticos mesmo somos nós, artistas, intelectuais, escritores. Eu, por exemplo, morri de ciúmes quando você elogiou o livro do Agualusa sobre o dia em que Zumbi tomou o Rio. Como eu queria que você elogiasse o meu romance, Caetano! Aquele sobre a decadência do ensino universitário. Só assim me transformaria em um best-seller e poderia mudar os rumos da educação no país.

Mas você não leu. E a educação continua essa vergonha. Culpa sua, única e exclusivamente sua. Milhões de jovens semialfabetizados continuam vagando por universidades de pífia qualidade por causa de sua irresponsabilidade. Não é de estranhar que o cara lá de Brasília faça pouco caso daqueles que têm diploma. Muito menos que continue a errar conjugações e regências. A culpa é sua, Caetano. Foi você que não leu o livro.

E ainda querem me convencer que somos formadores de opinião. Faça-me rir! Não servimos nem para fiscais de urna. Cultura não rende voto, meu querido. Ninguém quer saber o que pensamos ou discutimos. Há coisas mais importantes: o saco de farinha doado pelo vereador, a dentadura fornecida pelo centro odontológico do deputado, a bolsa mensal para a família depositada no banco do governo. Cultura pra quê?

Nestas terras, meu texto não vale meio panettone. Troco meu livro pelo seu leãozinho criado à base de acarajé e vatapá. O que acha? Os direitos autorais cabem no dedinho da meia do secretário, mas o orgulho é enorme. Você não vai se arrepender! Eu garanto!

Os intelectuais “somos” chatos, herméticos e bestas. O que me faz lembrar uma certa corrente da contemporânea literatura brasileira. Mas deixa isso pra lá. Nosso assunto aqui é outro.

Já ia me esquecendo, Caetano: tenho que explicar a frase do primeiro parágrafo. Qual era mesmo? Sim, a relação entre a inversão da lógica do Chico e o apoio ao presidente com base nas perspectivas eleitorais para o ano que vem. Hummmm! Esse problema é complexo. Muito Complexo.

Sabe o que é, nego? Tá dando uma preguiça! Posso deixar pra próxima? Tudo que eu disse aqui não passa de um arremedo insano de um velho professor metido a romancista. Meu texto, minhas ideias e minha vaidade são apenas ficcionais.

Dê um cheiro em Dona Canô e um abraço nas crianças.
Sou seu fã.
Ou não.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Entrevista com Edney Silvestre


Se eu fechar os olhos agora, romance de estréia de nosso amigo Edney Silvestre, alia pesquisa histórica, sensibilidade poética e um enredo ágil, envolvente. "Viva a narrativa", foi minha primeira reação ao terminar o livro, cujo final me emocionou radicalmente. Edney se preocupa em contar uma boa história, utiliza plots, prende o leitor. Viva ele!
A entrevista abaixo foi feita por mim no ano passado para a revista Contracampo. Acho que vale a pena repeti-la.
“Os escritores sentem a obrigação de serem experimentais. Isso é muito chato. Só os acadêmicos têm paciência de ler. O sujeito fica preocupado com a linguagem e esquece de contar uma história.”
“Aqui no programa não há nenhum preconceito. Acho que os escritores devem batalhar para ter a obra divulgada.”

O menino tímido de Valença, interior do Rio, ainda habita o repórter da Rede Globo de Televisão. As frases docemente articuladas, a voz grave e o tom veludo das pausas tranqüilizam o interlocutor. Transmitem confiança. Dão melodia aos diálogos. A timidez de Edney Silvestre é musical e sedutora. Uma companheira onipresente, que fica ainda mais perceptível durante o relato das lembranças de infância. Quando fala de si, a respiração torna-se mais pausada, as palavras parecem franciscanas, as histórias deslizam cadenciadas pelo timbre incomum do narrador.
Sua primeira memória literária remete aos quatro anos de idade, quando sofria de uma anemia profunda. “Eu era uma criança doente e não podia brincar. Então, me deram uns livros infantis. Não sei quais. Mas eu lembro de minha primeira professora primária lendo poemas de Fagundes Varela em sala de aula. Depois, quando fui alfabetizado regularmente, passei a freqüentar a biblioteca pública de Valença, onde as leituras eram livres, desde Tarzan até a biografia de Napoleão Bonaparte”
Aos doze anos, Edney conheceu Charles Dickens e Thomas Mann. Aos quatorze, leu a obra completa de Jean Paul Sartre e, em seguida, enveredou pela literatura brasileira através de Fernando Sabino. O jornalismo aconteceu por acaso. Não foi sua primeira escolha profissional. “Eu entrei para a Faculdade de História, mas não completei o curso. Fiz um curta-metragem que ganhou alguns prêmios e me convidaram para escrever uma crônica em O Jornal, onde começou minha carreira jornalística.”
Nessa época, as leituras de Dickens eram feitas no original - assim como os filmes americanos, vistos sem legendas no cinema de Valença - e ele foi convidado para redigir notícias em inglês para a Manchete Press, a agência de notícias do grupo Bloch. Durante alguns anos, trabalhou na empresa comandada pelo folclórico Adolpho Bloch, onde também escreveu reportagens para a revista Manchete e para a Fatos e Fotos, cujo editor-chefe, transferido para a revista O Cruzeiro, o levou para um novo emprego.
Mas a carreira jornalística foi interrompida prematuramente. Edney se demitiu de O Jornal, após ser censurado por fazer uma reportagem sobre a falência de um fabricante de charutos, o que acabou inviabilizando seus outros empregos. “A partir dali, ficou difícil conseguir trabalho e eu mudei de ramo. Como achava que sabia escrever e sabia fazer cinema, optei pela publicidade.”
Ao abrir as páginas amarelas em busca do novo emprego, conseguiu uma vaga na agência DPZ, a última em que procurou. Anos mais tarde, foi contratado pela produtora KSK Visuals para trabalhar em Nova Iorque e se mudou para os Estados Unidos. Só em 1992 voltou ao jornalismo, como correspondente do jornal O Globo na Big Apple. E, em 1996, criou o programa Milênio, ao lado do jornalista Paulo Francis, para a recém-lançada Globo News.
Há seis anos no comando do Programa Espaço Aberto Literatura, Edney conduz suas entrevistas com a mesma calma com que conversa em uma mesa de bar, onde ocorreu nosso encontro. Ele acabara de participar de um programa de TV produzido por estudantes da Universidade Gama Filho, cuja locação, em pleno shopping Downtown, na Barra da Tijuca, parecia ser o único detalhe que o inquietava.
- Preciso voltar para o Rio antes das quatro. – diz, olhando para o meu relógio, que marca duas e trinta e cinco.
- Aqui em São Paulo as distâncias são maiores. – respondo, entrando no comentário crítico e bem humorado sobre o bairro emergente da cidade.
Peço uma água mineral e um suco de laranja. Nossa conversa é apenas um complemento, já que a entrevista fora feita na semana anterior, por telefone. Mas a voz pausada continua a mesma, apesar da preocupação com a iminente “viagem interestadual”.

Contracampo: Sua estréia na televisão foi ao lado de Paulo Francis, outro grande conhecedor de literatura. O Milênio deveria ser um programa sobre livros?
Edney Silvestre: Não. O programa deveria falar de literatura, de arte, de música, etc. Eu fui para a Globo News em 1996 porque o Paulo Francis me conhecia através de uma entrevista que eu havia feito com o Norman Mailler. Até o entrevistado ficou impressionado porque eu lembrava de coisas que ele mesmo havia esquecido. Aliás, esse é o truque. Você estuda a vida do sujeito e vai para entrevista sabendo mais sobre ele do que o próprio. Nessa época, o Francis tinha uma coluna no Globo, o Diário da Corte, e me elogiou. Então, veio o convite para fazer televisão. E surgiu o Milênio.

Contracampo: Qual era a idéia original do programa?
Edney: Eu queria fazer um programa que eu não via na televisão. A literatura veio muito em função disso. Nós colocávamos o Norman Mailler e outros personagens, não necessariamente escritores. Então, a proposta era inovar, trazer discussões diferentes e relevantes. Depois, o Paulo Francis morreu e entrou o Lucas Mendes. Em seguida, o programa tomou outros rumos e eu voltei para o Brasil.

Contracampo: E aí você foi para o Espaço Aberto literatura?
Edney: Sim. Quando eu voltei para o Brasil, a Alice Maria (diretora geral da Globo News) me convidou para substituir o Pedro Bial. Mas, antes, teve o Zeca Camargo e outros.

Contracampo: Como você lida com a responsabilidade de comandar um programa sobre literatura em um país que lê tão pouco? Como escolher os entrevistados? Quais são os critérios do programa?
Edney: Isso é realmente muito difícil. Só uma editora lança sessenta livros por mês no mercado. E eu só tenho espaço para entrevistar quatro autores, mensalmente, entre todos que são lançados por todas as editoras. Eu tento variar entre escritores iniciantes e consagrados, mas é difícil definir critérios absolutos para isso.

Contracampo: Há uma intertextualidade nas tuas escolhas. É preciso saber antes sobre os livros. É preciso ler sobre eles em algum lugar. Que referências são essas?
Edney: Nós recebemos livros de vários lugares. É claro que as editoras mandam, as assessorias de imprensa também. Mas nós estamos sempre ligados. Não só nas mídias tradicionais, mas também na internet. Eu leio. O Paulo Marcelo, que dirige o programa, também lê. O Claufe Rodrigues, produtor e editor, lê. Outros editores e colegas lêem. E aí vamos escolhendo. Todos adoram descobrir pessoas. Sempre naquele pêndulo entre novatos e antigos.

Contracampo: Que autores novos você destaca?
Edney: Por exemplo, a Maria Helena Maciel, que é uma professora de literatura mineira, autora de O livro dos nomes. Ou a Tatiana Salem Levy, aqui do Rio, que escreveu A Chave da Casa. E há também um cara de Pernambuco, o Homero Fonseca, que escreveu um livro chamado Roliúde. Todos eles estiveram no programa. São pessoas que o público não conhece e a gente tenta revelar.

Contracampo: Qual é a repercussão quando você entrevista um autor novato? Vocês têm instrumentos para medir isso?
Edney: Sim. Muitas vezes os próprios autores nos falam da repercussão. O Jair Ferreira dos Santos, por exemplo, que escreveu o livro de contos CiberSenzala, aumentou muito a sua venda. E eu descobri o livro por acaso. Depois da entrevista, ele já chegou até a segunda edição.

Contracampo: Então, sem a mídia, a literatura fica inviabilizada?
Edney: Eu acho que sim. E o motivo é simples: como você vai tomar conhecimento de um livro sem a mídia? É impossível.

Contracampo: Mas os escritores têm um certo pudor para fazer divulgação. Parece que há um preconceito da crítica e da imprensa quando eles se engajam na divulgação da própria obra.
Edney: Aqui não há nenhum preconceito. Acho que os escritores devem batalhar para ter a obra divulgada. E as editoras devem investir mais nisso também. Há livrarias que vendem espaço nas gôndolas. Mas o que acontece com os autores que não têm divulgação? Vão para o fundo das prateleiras.

Contracampo: Você são pautados pela academia? Como é a relação com os críticos universitários?
Edney: Ainda há uma visão elitista da academia sobre o papel da literatura. É um ato narcísico, tanto dos autores, que escrevem apenas para a crítica acadêmica, quanto dos próprios críticos, que ficam naquela masturbação mental de fazer experimentos. Paradoxalmente, isso é uma velhice, uma coisa antiga, não tem nada de novo. Tudo que podia ser experimentado já foi. Ninguém quer mais contar histórias, só se preocupam com a linguagem.

Contracampo: O que a literatura perde com isso?
Edney: Perde leitores. Os escritores sentem a obrigação de serem experimentais. Isso é muito chato. Só os acadêmicos têm paciência de ler. O sujeito fica preocupado com a linguagem e esquece de contar uma história.

Contracampo: Isso pode acarretar injustiças? Novos autores podem ter a carreira encerrada por causa de uma crítica preconceituosa?
Edney: Sim. Isso é grave. Se o escritor não tiver o ego no lugar, desiste de escrever. A Tatiana Levy é um exemplo disso. O último livro dela foi muito mal criticado por uma acadêmica que disse que aquilo não passava das memórias de uma menina. Foi muito injusto. Ainda bem que ela não foi destruída por isso. E olha que foi a única resenha que saiu.

Contracampo: Há um abismo entre a academia e o leitor?
Edney: Sim. E isso afasta o público. Ficar sentado em um gabinete teorizando sobre literatura é muito fácil. O leitor quer uma história bem contada. Não quer exercícios narcísicos de linguagem, que só interessam aos acadêmicos.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Crônica da semana passada no Jornal do Brasil

Armando Nejar e o apagão no Leblon

O convidado chegou cedo, não queria se atrasar. Era um encontro importante, daqueles que só acontecem uma vez na vida. Estava prestes a conhecer o homem cujo apelido sintetizava sua importância no cenário mundial: o cara. E ele, o cara, convidara-o com pompas e honrarias, demonstrando um respeito inaudito para os padrões com que era recebido em outros lugares. Daí a ansiedade com o horário.

Mas o cara estava atrasado. Dez, vinte, quarenta, cinquenta minutos, e nada. Nem sinal do anfitrião. Enquanto isso, o convidado permanecia sentado na cadeira modernista que não fora projetada para sua estatura, balançando as perninhas curtas de forma descontrolada, num claro sinal de impaciência. Os olhos fixos no teto, a cabeça pendendo para o lado, os dedos percorrendo a barba grisalha em movimentos circulares e brutos. De repente, uma irritação talibã tomou conta dele.

Ameaçou ir embora, pular da cadeira, explodir o lugar. Mas foi convencido a ficar pelo tradutor que o acompanhava, cujos conhecimentos da língua árabe eram tão rudimentares que acabaram se tornando eficientes. Na dúvida, o convidado preferiu acreditar que estava sendo elogiado e esperou mais um pouco.

Só depois de duas horas o cara chegou.
- Armando, meu querido! Seja bem-vindo! Você é muito mais bonito pessoalmente!
O anfitrião era simpático, não havia dúvidas. Tinha as bochechas rosadas, o sorriso farto e um jeito de falar que lembrava velhos camaradas siberianos, daqueles que bebem vodka no gargalo e trocam beijos estalados. Em poucos minutos, passou da irritação à idolatria. “Votaria nesse cara pra qualquer coisa”, pensou, enquanto recebia o abraço apertado que quase fraturou suas frágeis costelas.
- Vamos logo para a sala de jantar, Armando. Mandei preparar uma buchada de bode pra nós.
O convidado sentou-se à cabeceira da mesa, incentivado pelo cara, cuja esposa foi logo oferecendo um aperitivo tipicamente brasileiro .
- Posso servi-lo, senhor Nejar?
- Claro! E me chame de Armando, por favor.
Aproveitando a intimidade recém-adquirida, o anfitrião alertou:
- Cuidado com esse aperitivo, Armandinho. Ele sobe rápido.
- E eu não sei? Como você acha que eu estava quando neguei o holocausto? Não sou preconceituoso! Meu problema são esses viadinhos da imprensa.
- Aqui no Brasil é igual. Esse pessoal deturpa tudo. Acham que são fiscais, que podem nos investigar. Quem deu tanto poder a eles?
- Isso é culpa dos americanos. E ainda querem me impedir de construir a bomba! Como é que eu vou me defender desses terroristas? – perguntou Armando Nejar.
- Tem meu apoio irrestrito. – respondeu o anfitrião.
- Além disso, a energia nuclear é muito mais limpa. Estamos fazendo um bem para o mundo inteiro, não apenas para nós.
- Sempre digo isso. A ecologia é um problema de todos porque a terra é redonda. Se fosse quadrada, a fumaça ficava só com os gringos. Mas ninguém entende meu raciocínio, Armandinho. São uns ignorantes.
Lá pelo sétimo aperitivo, a buchada foi servida. O convidado admirou as vísceras costuradas naquela superfície incomum cuja textura lhe fazia lembrar uma comida típica de sua terra natal. Sentiu-se em casa e traçou dois pratos fundos, mas, antes de encher o terceiro prato, um pique de luz deixou a casa às escuras e a panela rolou pela mesa até cair no chão.
- Apagão! – berraram os vizinhos.
- É um atentado! Vão me matar! – gritou Armando.
O anfitrião se levantou tranquilamente, acendeu um par de velas, recolheu a comida do chão e serviu o convidado, que nem se importou com a sujeira, tamanho era o pavor que sentia.
- Calma, Armandinho! Fui eu que mandei apagar as luzes. Agora senta aí e vamos curtir nossa buchada à luz de velas.
- Mas por que você fez isso?
- Elementar, companheiro. No escuro, ninguém percebe que o Dirceu está voltando, o Sarney está recontratando, os gastos estão aumentando, o Renan está mandando e outras coisinhas mais. Além disso, aproveitei pra sacanear o Serra e o Aécio: mandei cortar a luz em São Paulo e em outros dez estados! – disse o anfitrião, antes de soltar uma gargalhada.
- Mas acabei de saber que em Minas não teve apagão. – disse a esposa, atenta à conversa do marido.
- E vocês acham que não pensei nisso? Pra sacanear o Aécio mandei cortar a luz do Leblon, querida. Nem aos restaurantes ele consegue ir.
Com inveja de tanta astúcia, Armando Nejar propôs um brinde:
- Ao meu mais novo e melhor amigo: você é o cara!