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Escritor, psicólogo, jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Literatura pela PUC-Rio, Pós-Doutor em Semiologia pela Université de Paris/Sorbonne III e ignorante por conta própria. Autor de doze livros, entre eles três romances, todos publicados pela ed. Record. Site: www.felipepena.com

sexta-feira, 28 de maio de 2010

O AMOR NÃO DISCUTE, VAI EMBORA. (crônica de hoje no JB)

O amor não discute, vai embora

Ela o manipulava utilizando a própria indignação como estratégia. E não precisava se colocar no papel de vítima. Bastava fazê-lo perceber os julgamentos injustos, a paranóia, a insegurança. Mostrava-se plena, absoluta. Uma confiança quase religiosa perpassava seu sorriso meio de lado enquanto falava. Mas não era tão confiante assim.

Só pareceu ter a situação sob controle até reparar nas estantes vazias da sala e nos caixotes com livros perto do bar, onde, no lugar das garrafas, jaziam pedaços de jornal velho. Havia candelabros cobertos com plástico e quadros embrulhados com papelão. Duas malas cheias estavam empilhadas ao lado da porta, junto com alguns objetos que ainda não haviam sido embalados.

Sentiu o golpe, mas fez-se de desentendida. Aquele idiota recalcado estava fugindo! Fugindo de verdade! Fisicamente. Geograficamente. Covarde filho-da-puta! Por que ficar de conversinha se já estava decidido a partir? Teve vontade de ser mais violenta do que ele, e não apenas de forma verbal. Precisava mordê-lo, arranhá-lo, bater naquela cara bonita. Como ele era bonito! Agora ainda mais, como um soneto incompleto, uma escultura neoclássica sem os membros, algo inacabado e, por ser inacabado, muito mais bonito.

Não tinha um rosto geométrico. Era masculamente desproporcional: os olhos grandes, as maçãs salientes, o queixo pontiagudo e rachado, a barba meio grisalha com falhas visíveis em ambos os lados. E os sulcos laterais denunciando a idade, o detalhe preferido dela. Um rosto perfeito de um homem perfeito. Tão perfeito que não o veria mais.

- Vou voltar pra casa. Não posso mais ficar aqui. Meu voo está marcado pra depois de amanhã.

Então era o fim. Antes mesmo do começo. O fim. O que poderia fazer? Segurá-lo pelo pescoço? Encenar um escândalo? Suplicar para que ficasse? Dizer: eu te amo, não me abandone! Isso seria pior do que perdê-lo. Porque perderia a fleuma, a postura altiva, a verve crítica que o conquistara. E, nesse caso, o perderia de qualquer jeito.

- Não há encantamento na hora da partida. – ele disse. E ela ficou em silêncio.

O jogo de aforismos de repente perdera o sentido. Não conseguia elaborar uma resposta à altura, uma frase de efeito, algo genial que a trouxesse de volta ao controle. Pela primeira vez, não sentia qualquer prazer na superioridade intelectual. Naquele instante, gostaria de ser uma dona de casa siciliana, com as ancas largas, a lasanha no forno e as crianças na barra da saia.

Queria não ter pensado na carreira, no mundo, na sociedade capitalista. Queria não ter se filiado a um partido de esquerda. Queria não ter brigado com a família. Queria não ter lido Nietzsche, Foucault, Marx, Freud, Deleuze, Lacan. Queria não ter ombros largos. Queria não ter opinião.

Mas tinha. E era estranho pensar como tudo que representava tanto valor poucos minutos antes agora não passava de névoa, espuma de chuveiro, pó.

Deslizou o corpo pelo sofá, segurando no braço, para não cair. Olhou reto, certeira, nos olhos dele. Uma lágrima insistia em romper o bloqueio emocional, mas ela a segurou, refez o dique. Enxugou o canto, discretamente, dilatando a pupila para disfarçar. Ele se aproximou, curvou o corpo, tentou beijá-la na testa, mas ela o afastou.

Beijo na testa era pior do que separação.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Prólogo do livro O MARIDO PERFEITO MORA AO LADO

Prólogo


Por que estamos aqui? Sei lá! Culpa dele, só dele. Responde aí, Carlinho! Ele não fala, ficou mudo. Fala, Carlinho! Conta a nossa história. São dez anos. Conta tudo, desde o começo. O primeiro encontro, o vinho, as flores, o beijo. Não, o beijo não. Disso ele não lembra mais. Depois de um tempo só ficam aqueles estalinhos de boa noite, como dois compadres siberianos. E as promessas, claro.
Conta pra ela, Carlinho! Como não prometeu nada? Cadê o cara que abria a porta do carro, que elogiava o vestido, que recitava poesia no ouvido, que me olhava com fome e enfiava a língua na minha garganta? Você inteiro foi uma promessa. Ninguém avisou que tinha prazo de validade.
É por isso que estamos aqui, doutora. Eu te chamo de doutora ou pelo nome mesmo? Então prefiro doutora. A senhora pode me chamar de Olga. Não gosto de formalidades. Não é, Carlinho? Fala, Carlinho! Isso aqui é pra nós dois. Terapia de Casal. Pra mim e pra você, entendeu? Continua contando!
Pula pro apartamento. Não é sexo, Carlinho! Quer que eu fale de prazo de validade outra vez? Fala do apartamento, quando fomos morar juntos. Eu sei, você não me convidou. Meus sapatos é que invadiram o teu closet, os vestidos se apossaram dos cabides e as blusas invadiram as gavetas. Pra que você precisava de tantas camisas listradas? E a coleção de calças de lã? No Rio de Janeiro, Carlinho!? Você não convidou, mas também não desconvidou. Outra promessa.
Claro que era uma promessa. Fiz comidinha, arrumei a cama, até lavei a louça. Uma esposa vitoriana, que nem a tua mãe, a tua avó e toda a italianada da tua família. Como não era esposa? Essa era a maior das promessas.
Você era perfeito, Carlinho.