E se...
A sensação era patética e, no mínimo, engraçada, ela teve que admitir. Havia sempre se orgulhado de ter sido uma boa menina e, agora, vejam só, olhava para ele deitado ali ao seu lado e não sentia qualquer vestígio de culpa. Era óbvio que ela tinha sofrido. Talvez ninguém jamais saberia tamanho conflito que ela havia sentido, o medo de magoá-lo, a dúvida que a remoia por dentro: e se der tudo errado?
Era impossível negar que ele não a enxergava mais fazia tempo. Tal fato, ela perguntou a si mesma muitas vezes, dava a ela o direito de não ter sido fiel à promessa de amá-lo somente e a mais ninguém? Ele não havia cumprido o juramento de dois anos antes, em que prometera fazê-la sempre feliz e completa. E o que havia restado, naquela cama, naquela noite? Ele era apenas um desconhecido.
Claro, era claro que existia o medo de perdê-lo. Não se imaginava sem ele, não podia, não tinha certeza de que conseguiria por conta própria. Por outro lado... Ela virou-se de costas para ele, fechou os olhos e os apertou com força. Ela era mulher, era jovem, sempre fora desejada. Por que ele não a desejava mais? Por que a culpava por suas péssimas escolhas? Ela precisava de um toque carinhoso, de um olhar apaixonado e, quando o outro apareceu, disposto a confortá-la, falando tudo aquilo que ela desesperava-se por ouvir... Como ela tentou evitar, meu Deus, como ela quis se manter longe e distante. Mas não é assim que funciona, certo? O destino pregou-lhe peças e, insistentemente, colocou o outro em seu caminho. Irresistível.
Ela abriu os olhos e admirou a escuridão. As sombras das árvores projetadas nas paredes brancas do quarto, tornando aquela realidade ainda mais parecida com um filme de terror. Uma lágrima pesada escorreu, percorrendo lentamente o caminho do olho até o queixo, mas não havia mais a dor insuportável nas entranhas. O fato fora, sim, consumado, mas não havia culpa alguma em tê-lo feito. A única culpa era de não ter sido capaz de arrepender-se, de tê-lo desejado mais, por ter se deliciado tanto nos braços do outro. O jeito como ele a puxou para si mesmo e respirou em seu ouvido. Ah. Aquele beijo quase roubado, o frio adolescente na barriga, o sorriso que não se desmanchava. "Você parece tão feliz", ele disse quando ela voltou do primeiro encontro com o outro. Então, as perguntas voltavam ao ponto inicial.
Por que ele parara de desejá-la? Por que permitiu que ela se apaixonasse por outro? Aquele não havia sido o contrato inicial. E tudo aconteceu bem embaixo do nariz dele! Que tipo de homem pede a um concorrente em potencial que cuide de sua mulher, justificando-se de que precisa de tempo livre para ganhar mais dinheiro? O tipo de homem que pede para ganhar um par de chifres, ela riu amargamente para si mesma diante de tais pensamentos.
Ela era tão nova, mas sentia-se tão desperdiçada, tão infeliz. Como ele nunca havia entendido por que ela soltava suas mãos quando o outro aparecia? Era tão óbvio. Ele perguntava, vez ou outra, por que ela vivia sorrindo pelos cantos. Cada pergunta gerava dentro dela um ressentimento maior, porque ele era totalmente incapaz de se dar conta da realidade. Ela tinha outro e estava perdidamente apaixonada.
Mais uma vez, virou-se de bruços. Estava incomodada, levantou um pouco a persiana branca e admirou o céu negro daquela madrugada. Adorava observar o balanço das árvores, ouvir o farfalhar das folhas desidratadas pelo frio em excesso, e percebeu-se ainda mais pensativa no amante. Amante. O primeiro encontro dos lábios, como ela se sentiu boba e menina! Era como se nunca tivesse beijado alguém antes. Fechou os olhos sem se dar conta e sorriu. A lágrima solitária e fugitiva secara e restou apenas o desejo urgente de vê-lo. Mas teria de ser naquele momento, agora, de qualquer forma, e, nossa, uma corrente elétrica invadiu seu corpo, tão intensa, que ela teve medo de gemer alto. Respirou fundo, virou-se de barriga para cima, fitou o teto. As sombras das folhas formavam figuras disformes.
Como aquilo podia ter acontecido com ela, uma menina tão boa. Quem diria que ela se tornaria alguém tão má? Virou a cabeça, olhou para o corpo adormecido ao seu lado, um homem que não lhe trazia mais nenhuma emoção forte, a não ser constante frustração. Esticou a mão, tocou-lhe levemente as costas com a ponta dos dedos. Um pedaço morno de carne. Não estava no script da história deles que chegariam a este ponto. Ele a traíra primeiro quando começou a privá-la de tudo que prometera no começo? Passou as mãos pelos cabelos, virou-se novamente de lado, suspirou. Sentia-se exausta. Fechou os olhos. A pergunta que não a deixava em paz voltou a martelar: teria sido muito pior ter traído os próprios sentimentos, não? Não suportaria passa resto de seus dias se infernizando com o fatídico e se... Sentia-se louca, devia mesmo estar. Mas, ali, naquela madrugada, não tinha mais forças para concluir nada. Mais uma vez, fechou os olhos e, dessa vez, deixou-se ser vencida pelo cansaço.
Quem sou eu
- Felipe Pena
- Escritor, psicólogo, jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Literatura pela PUC-Rio, Pós-Doutor em Semiologia pela Université de Paris/Sorbonne III e ignorante por conta própria. Autor de doze livros, entre eles três romances, todos publicados pela ed. Record. Site: www.felipepena.com
sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
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