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Escritor, psicólogo, jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Literatura pela PUC-Rio, Pós-Doutor em Semiologia pela Université de Paris/Sorbonne III e ignorante por conta própria. Autor de doze livros, entre eles três romances, todos publicados pela ed. Record. Site: www.felipepena.com

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

As frases não ditas são eternas - parte II

Crônica não é conto de fadas. Você jamais encontra o sapato, Berenice. No máximo, um paletó por cima dos ombros. O tintureiro no dia seguinte. Um belo café no sábado de manhã.

Quem precisa de fadas?

O paletó é muito melhor do que o sapato. Pense bem! Pés descalços ou o frio nas costas? Capa e espada ou terno e gravata? Cara de anjo ou barba de homem? Essa história de príncipe encantado foi criada pra confundir os hormônios femininos. Basta lembrar de um simples detalhe: o sujeito veste um collant apertado com shortinho balonê. Entendeu? Shortinho balonê, minha querida! Que é isso? Onde está a credibilidade?

Você desfilaria pela Avenida Rio Branco com alguém assim? Sairia pra jantar no Garcia & Rodrigues? Tomaria um chope no Cervantes? E a galera da Merza, o que diria? Tudo bem, você não vai mais a São Paulo. Pânico de avião, preguiça da rodovia. Então, imagine. Apenas imagine aquela mesa lateral, perto do balcão, cheia de marias-teclado falando do shortinho balonê. Sim, elas gostam. É verdade. Até já babaram naquele menino de um metro e sessenta. (Ele é carioca, Berenice.) Eu sei, não importa. (Tem barba.) Claro, é pra compensar. A altura e o shortinho. E, de vez em quando, o casaco estiloso, comprado no Shopping Leblon. Volte para o paletó, minha querida. Esqueça o resto. Principalmente os sapatos.

Berenice acordou cedo. O sonho ainda estava quente, real. Shortinho, sapato, paletó, príncipe. Uma névoa de pensamentos sem sentido. O enredo surrealista. Um filme de David Lynch. Se tivesse lido Freud, talvez pudesse interpretar aquelas ideias fora de lugar. Lembraria do deslocamento, um conceito vago, pilar do pensamento freudiano sobre os sonhos. A via régia para o inconsciente. A forma mais eficaz de acesso a seus recalques, suas angústias. Meio pretensioso, né? Ou não.

- Que pena, não sou psicanalista – pensou, em voz alta, os olhos ainda se acostumando com a luz que entrava pela janela.

- Todos somos. Os jornalistas mais, os psicólogos, menos – respondeu Pastoriza, em pé, na frente da cama, segurando a bandeja com o café da manhã.

Por algum motivo desconhecido (ou recalcado), Berenice vestia apenas uma camisa listrada de manga comprida, sem os três botões de cima, que pareciam ter sido arrancados com violência, deixando fiapos de linha em seu lugar. Ela se acomodou no meio da cama, sentada, pernas cruzadas em flor de lótus, as pontas da camisa cobrindo a parte interna das coxas. Na bandeja, havia apenas um café preto, duas torradas com as bordas enegrecidas, manteiga, geleia de uva e um suco de caixinha, daqueles com mistura de sabores.

- Minha torradeira é velha. A casca sempre fica assim: completamente queimada. Vou cortar pra você.

- Não precisa. Tá ótimo. Adoro pão bem passado – ela disse, ajeitando as mangas.

- Pelo menos a geleia é muito boa. Francesa. Foi presente de uma psicanalista de Bordeaux. Ela e o marido têm um vinhedo e também produzem essa geleia maravilhosa.

- Geleia e psicanálise. Boa redundância. Eu me interesso pelas duas.

- Tá querendo mudar de profissão? – perguntou Pastoriza.

- Não. Só tentava entender o sonho que tive. Queria saber o que vai me acontecer.

- Nesse caso, recomendo uma cartomante. A psicanálise não vai te ajudar muito.

- Será? A parte do café, por exemplo... Eu previ. Tava no sonho.

- Essa é fácil. São restos diurnos. Capítulo sete da Interpretação dos Sonhos. Posso dizer que você projetou o dia de hoje com base na noite de ontem.

Papinho brabo. A história da geleia e da torradeira estava muito melhor. Berenice começava a achar que a conversa freudiana infanto-juvenil acabaria com as boas lembranças da noite anterior. Talvez o sujeito fosse mesmo um Don Juan genérico, o que nem seria problema. Tratá-la como ignorante é que enfraquecia o cara. Ou, pelo menos, a imagem que tinha do cara. Onde estava o cronista do jornal? Cadê o autor daquelas metáforas precisas, das metonímias poéticas, das frases simples que expressavam a laboriosa tradução da complexidade. Sem didatismo, sem arrogância, sem subestimar o leitor. Onde estava? Onde? Onde?

Meu café da manhã por uma crônica de Antonio Pastoriza!!!

A geleia francesa era muito boa mesmo. Poderia até compensar a decepção. Um chocolate belga e a serotonina atingiria níveis sexuais. Berenice acostumara-se às compensações. Colégio católico do interior com púberes em fraldas, faculdade pública com garotos mimados da zona sul, redação de jornal com velhos barrigudos que agiam como púberes em fraldas e/ou garotos mimados da zona sul. O chocolate ganhava de goleada. Belga, senegalês, australiano. Qualquer um. Na média, um chocolate valia mais do que mil palavras com testosterona.

- Taí um clichê verdadeiro – ela disse, na entropia do raciocínio.
- Qual? A interpretação dos sonhos ou o café na cama? – perguntou Pastoriza.
- Eu estava pensando em chocolate.
- Claro. Foi bom pra mim também.

A risada cúmplice confirmou os clichês e as repetições.

Pastoriza abriu uma caixa de Sonhos de Valsa. Nova confirmação.
Então, o cara tinha bom humor! Quantos pontos você ganhou com aquela resposta, Antonio!? Foi-se o psicanalista arrogante e voltou o cronista elegante. Até dessa rima pobre nós fizemos piada. E do sonho. E da cartomante. E da psicanálise. E do jornalismo. E da torrada queimada. E do papinho brabo. E da geleia francesa. E da sua colega de Bordeaux. E da minha paixão, que estava começando.

Ali, você aprendeu a receita. Nos anos seguintes, bastou manter a sagacidade. Você relevou meus gritos, minhas crises, minhas inseguranças. Sempre com uma palavra espirituosa, um comentário jocoso que me desarmava. Não precisou mostrar erudição ou aplicar suas técnicas do divã. Ou será que aplicou?

Não importa. Cada dia mais apaixonada, eu me recusei a ver defeitos. Só queria enxergar o ideal de homem que você encarnava. Culto, moderno, másculo, charmoso e, acima de tudo, bem humorado. Ele não pode ser tão perfeito, Berenice – diziam minhas amigas casadas, há muito mais tempo no mercado. Vocês não o conhecem como eu – respondia, acendendo a vela pro teu altar.

Acendi velas pro teu altar todos os dias.

Com você, nunca houve uma frase feita, uma repetição, uma rotina. Exceto as que faziam parte de nossos clichês, esses sempre cuidadosamente repetidos, até a exaustão, que era a nossa forma de não ser repetitivo, não ser rotineiro, não cair no sofá com o controle remoto nas mãos.

Você tinha o insensato dom da originalidade, Antonio. Você me surpreendia. Não mandava rosas, preferia margaridas, lírios e outras flores de nomes desconhecidos. Não escrevia cartas de amor, desenhava. Não comprava joias, esculpia meus anéis.
E quando eu disse que te amava, você não respondeu com o fatídico eu também.

Ponto pra você, Antonio. Arrependimento pra mim.

O que posso dizer? Há momentos (quase todos) em que prefiro a redundância. Por que você nunca disse que ...? Por quê? Por que você não disse, Antonio?

Por que não disse?


2 comentários:

Joyce Figueiró disse...

Caramba! Genial, pra variar!

Já me sinto íntima do Pastoriza, sabia? Só não conhecia a Berenice. Será que ela tá no terceiro livro? Tô curiosa.

Até dia 25!

Beijos

Jacinta disse...

Como diria Cebolinha: demolô! rs