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Escritor, psicólogo, jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Literatura pela PUC-Rio, Pós-Doutor em Semiologia pela Université de Paris/Sorbonne III e ignorante por conta própria. Autor de doze livros, entre eles três romances, todos publicados pela ed. Record. Site: www.felipepena.com

domingo, 30 de agosto de 2009

No jornalismo não há fibrose (artigo publicado no JB de 30/8)

No jornalismo não há fibrose. O tecido atingido pela calúnia não se regenera. As feridas abertas pela difamação não cicatrizam. A retratação raramente tem o mesmo espaço das acusações. E quando tem, a credibilidade do injustiçado dificilmente é restituída, pois o erro fica marcado no imaginário popular. Quem tem a imagem pública manchada pela mídia não consegue recuperá-la completamente.

Vamos lembrar o caso da Escola Base para exemplificar este raciocínio. O dono da instituição de ensino foi acusado de pedofilia, teve seu nome publicado nos jornais, mas acabou inocentado. Entretanto, vale perguntar: mesmo sabendo que o dono é inocente, quem matricularia seu filho nesta escola? Na maioria das vezes, responder com sinceridade a esta questão significa verificar que a fibrose realmente é impossível no jornalismo.

Podemos aplicar o mesmo raciocínio a casos como o de Ibsen Pinheiro, em Brasília, ou da Casa Pia, em Portugal, entre outros. Somos cruéis em nossos julgamentos, pois esquecemos que eles são mediados. Se não forem pela imprensa, podem ser pelos nossos próprios preconceitos, pelo inconsciente ou pela linguagem. Em muitos casos, são por todos esses fatores juntos. Assim, nosso veredicto acaba se resumindo à velha luta entre o bem e o mal, embora os indivíduos sejam muito mais complexos do que isso. Portanto, os repórteres devem se eximir do julgamento. Sua função não é judiciária, e ter consciência disso é meio caminho para uma conduta que se possa minimamente chamar de ética.

Aliás, uma das definições mais criativas de ética jornalística foi esculpida no livro A regra do jogo pelo colega Cláudio Abramo: “Sou jornalista, mas gosto mesmo é de marcenaria. Gosto de fazer móveis, cadeiras, e minha ética como marceneiro é igual à minha ética como jornalista – não tenho duas. Não existe uma ética específica do jornalista: sua ética é a mesma do cidadão.”

A ponderação de Abramo significa que não é possível estabelecer critérios para um grupo se eles entrarem em conflito com as idéias e as representações da coletividade. Na teoria, a palavra grega ethos significa aquilo que é predominante nas atitudes e sentimentos dos indivíduos de um determinado meio, mas também é o espírito que move o coletivo. Ou seja, há sempre uma ligação vital entre o indivíduo e a comunidade.

O jornalismo participa da construção social da realidade, não é apenas o seu espelho. Entre a infinidade de fatos apurados pelos jornalistas, só alguns serão publicados ou veiculados, levando em consideração critérios como a característica do veículo, suas rotinas de produção e a própria presunção de quem é o seu público. Portanto, não retratamos a realidade objetivamente, como alguns acreditam.

No jornalismo, a objetividade não surgiu para negar a subjetividade, mas sim para reconhecer a sua inevitabilidade. Seu verdadeiro significado está ligado à idéia de que os fatos são construídos de forma tão complexa e subjetiva que não se pode cultuá-los como expressão absoluta da realidade. Pelo contrário, é preciso desconfiar desses fatos e propor um método que assegure algum rigor ao reportá-los.

Com esse espírito foram criadas as técnicas do lead e da pirâmide invertida na virada do século dezenove para o vinte. Elas substituíram o jornalismo opinativo pelo factual, priorizando a descrição objetiva dos fatos. Mas, conforme deixou claro o jornalista americano Walter Lippmann, que sistematizou essas técnicas em 1920, no livro Public Opinion, “o método é que deveria ser objetivo, não o repórter.”

Não acredito na idéia conspiratória de manipulação deliberada das notícias em favor desta ou daquela visão ideológica de mundo. Mais do que anacronismo, seria desconhecer o funcionamento de uma redação e menosprezar o leitor. A produção de notícias é planejada como uma rotina industrial, com procedimentos próprios, limites organizacionais e, principalmente, consumidores exigentes, capazes de reconhecer intenções manipuladoras nas reportagens. As normas jornalísticas têm muito mais importância do que preferências pessoais na seleção e filtragem de notícias.

Por outro lado, se como venho argumentando ao longo deste texto, a objetividade surge porque há uma percepção de que os fatos são subjetivos, então também podemos concluir que eles são mediados por indivíduos com interesses, carências, preconceitos e, inclusive, ideologias. Nesse sentido, é inevitável a existência de batalhas ideológicas nas redações, mesmo que amenizadas por um conjunto de procedimentos profissionais.

O bom jornalismo se caracteriza pela eficiente administração deste paradoxo.

5 comentários:

Kaká disse...

Não me agradaria pensar que questionar a objetividade seja uma atitude vanguardista. Mas, no que diz respeito à falácia da objetividade jornalística, é bem mais coerente pensar no método como objetivo, e não quem o emprega, como bem proposto no exemplo do Public Opinion. Até porque o jornalista, marceneiro, indivíduo antes de tudo, mesmo que tente resguardar suas ideologias as deixa transparecer nem que seja por uma palavra proferida mais efusivamente, um gesto, uma levantada de sobrancelha enfim.
Paradoxos. Estão por toda parte, e temos que administrá-los todos os dias, dentro e fora da redação...

Jacinta disse...

Tudo é ideológico. Sobretudo os discursos de isenção e objtividade. E creio que mesmo os "procedimentos e métodos" já são por si sós procedimentos e práticas ideológicas. Nunca estudei jornalismo nos bancos escolares. Minhas aulas vieram da leitura de jornal e da literatura, principalmente. Depois que li alguns textos, entre eles Memórias do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, e Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues, abri mão de minhas eventuais ingenuidades acerca do assunto. Mais do que "Conspirações", há interesses os mais diversos, sobretudo econômicos, que regem a cartilha das práticas jornalísticas no Brasil, e no Mundo.

Ricardo Nespoli disse...

Ótimo artigo. Objetivo.

Unknown disse...

Excelente artigo... gosto muito de ler os seus textos, principalmente pela clareza de sua argumentação.

Felipe Pena disse...

Vocês contribuem muito com a participação. Origado. É o leitor que dá a dimensão do texto.