Aquela teria sido uma manhã como qualquer outra, se não fosse a primeira depois de Jussara me abandonar, de eu ter perdido meu emprego e de ter descoberto que eu estava preso dentro de uma garrafa. Não era somente eu que estava preso ali, mas todo o meu quarto. Abrindo a porta ou a janela, deparava-me com o vidro grosso, fumê, que me impedia não só o ir-e-vir, como me restringia a visão completa do mundo. Lamentei meu quarto ser de fundos, pois assim nem podia gritar a quem passasse na rua. Gritar poderia, e o fiz, mas me pareceu que as palavras batiam no vidro espesso e retornavam ecoando para dentro de mim mesmo. O teto não mais existia. Olhava para cima e encontrava o vidro se prolongando até se afunilar no gargalo, e bem lá no topo, uma rolha que o fechava hermeticamente. Não havia dúvidas, estava preso dentro de uma garrafa. Perplexo, sentei na cama. Olhei em torno. Nem meu quarto era o mesmo. Muitos dos meus móveis haviam sumido. A pequena estante com meus livros, o computador, o armário. Onde estariam minhas roupas? Mas se bem que pensei: o que faria eu com roupas, se nem podia deixar aquele lugar. Me sobrara a cama, uma mesinha de cabeceira e um pequeno sofá, colado à janela. Tentei lembrar do momento em que me deitei, mas não consegui. A última lembrança que tinha era da vontade incontrolável que tive de dar fim ao sofrimento. Dos móveis da sala que arrebentei, tentando expulsar aquele berro preso no peito. De alguém tocando meu ombro... e de mais não me lembro. Vasculhei as gavetas na busca de uma chave, algum objeto cortante que pudesse arrebentar aquele vidro, mas estavam vazias. O sofá pesava muito e não conseguia erguê-lo a fim de jogá-lo contra a porta. Pouco adiantaria arremessá-lo contra a janela, que fiz questão de cercar com grades, trazendo para aquela cidade pequena o hábito de clausura impregnado em mim, fruto das mazelas da cidade em que nasci. O quarto também não tinha mais a cor salmão que havia sido escolhida por Jussara. Estava todo branco. As paredes, a cama, o colchão, os lençóis, a fronha, a mesinha, o interior das gavetas, o sofá... aquele excesso de claridade estava me sufocando, corri e grudei o rosto no vidro fumê, necessitando de alguma escuridão, para poder respirar, me salvar... * Tudo começou quando, diante de uma crise de pânico, deixei o desvario do emprego no centro financeiro do país e me mudei para o interior. Não uma cidade completamente perdida no mapa, daquelas em que todos se conhecem, pois convergem a um mesmo ponto ─ a praça central, com o seu coreto. Não, uma cidade com carros, com pessoas, com ruas, com gente que se conhece e outras tantas que não, com novos ares, novas perspectivas. Ali, por sorte, consegui um emprego de vendedor numa concessionária de veículos. Logo me entrosei com os colegas e saíamos pelas noites, despejando o tempo livre e a cerveja nos bares que ficavam abertos até tarde. Foi num desses lugares que conheci Jussara. Ela chegou no banco de carona de um conversível, discutia calorosamente com o homem ao volante. Até que ele a esbofeteou. Não podia assistir, impassível, àquela cena. Fui tomar satisfações, apesar dos esforços de meus companheiros de que não valia a pena, de que ela não valia a pena. O cara, muitas mãos maiores do que eu, saiu do carro e mandou que eu não me metesse. Mas o sangue italiano, de muitas gerações atrás, não se conteve. Um soco foi suficiente para me deixar no chão. Não mais ele fez. Entrou no carro, e ouvi o cantar de pneus que o levou para longe. Eu é que deveria tê-la protegido e quando vi, ela é quem cuidava de meu nariz arrebentado. Meus amigos tentaram me resgatar do chão, mas preferi ficar nos braços daquela morena de olhos claros. Me deixei carregar para casa, onde, mal passando da porta, terminamos a noite em minha cama. No dia seguinte eu era o mais feliz dos homens. Meus amigos alertavam-me que os poucos que a conheciam não deixavam que a fama de Jussara tivesse boa cotação. Achei que tinham inveja de mim, pois, ultimamente, sobrava para eles apenas algumas barangas que passavam à frente da loja, deixando cair lenços, carteiras e os decotes, ou as mulheres da Rua das Passadeiras, que aliviavam as aflições masculinas em troca das comissões que eles ganhavam na semana. Hoje vejo que me precipitei, mas não correram quinze dias, quando Jussara se mudou lá para casa, com mala e lingeries. Então, logo os problemas começaram. Diariamente, ao chegar em casa, não a encontrava. Ela voltava tarde da noite e quando eu ameaçava reclamar, alegava que eu a deixava sozinha o dia todo, que não lhe dava dinheiro, que lhe negava atenção. Tentava me defender, dizendo que pouco ganhava na loja, que precisava trabalhar para conseguir esse pouco e que poderíamos sair à noite – se eu a encontrasse em casa. Aquelas discussões eram vãs. E quando nos cansávamos, terminávamos na cama, e tudo mais era esquecido. Muitas vezes, eram madrugadas inteiras em que me via tentando lhe provar que ela era importante para mim. Madrugadas que me deixavam arrasado pela manhã e sem forças de convencê-la de que eu precisava ir trabalhar. Logo começaram os atrasos; muitas vezes, as faltas. Eu, que era um funcionário exemplar, comecei a ser advertido. Já não conversava com meus amigos, pois não aceitava que eles criticassem minha mulher. Já não saía aos bares, e quando o fazia, acompanhado de Jussara, podia sentir os cochichos às nossas costas. Sentindo-me um trapo que tentava se manter em pé, não tinha forças para convencer nenhum cliente. As vendas rarearam e com elas, as comissões. Claro que o dinheiro entregue à Jussara também rareou, o que não podia ser dito das brigas. Quanto menos dinheiro, mais discutíamos. Porém, em algumas vezes, Jussara não mais voltava tarde, simplesmente não voltava. Então, minhas madrugadas não eram na cama com ela, mas vasculhando a cidade à sua procura, até o amanhecer. Sentia-me satisfeito nas noites em que ela retornava e não mais perguntava onde estivera, querendo apenas senti-la entre os meus lençóis. Já não era ela que me pedia provas de amor, era eu que precisava dessas provas. Não sei quem causou o quê: se Jussara me fez perder o emprego ou se perdi Jussara porque fui posto na rua, mas tudo aconteceu no mesmo dia. Uma tarde fui chamado à sala de meu gerente e ele me comunicou que eu estava despedido. Minhas contas já estavam feitas e o pouco que eu tinha a receber, descontadas as faltas, estava num envelope. Antes de chegar em casa, parei num bar, e acho que deixei boa parte daquele dinheiro em incontáveis copos de cerveja. Entrei em casa já com a lua alta. Era uma das noites na qual eu devia ter sido premiado, com a presença de Jussara. Talvez por ser o dia do pagamento, ela me esperava com uma lingerie especial, pronta para me alegrar a madrugada. Mas quando viu meu estado, reclamou, talvez com razão. Brigamos feio. Eu não estava querendo conversa e muito menos transar. Mas Jussara não cedia, nem no desejo, nem nas cobranças. Queria sexo e o resto do dinheiro. Tanto ela me perturbou que, quando percebi, encerrava nosso ciclo da mesma forma que começou: dei-lhe um tapa no rosto, selando a violência do início de nossa história. Ela me devolveu o gesto com um empurrão e bati com a cabeça na estante. Tonteei e não conseguia me levantar, para impedi-la de passar por mim com a mala e com o envelope. Gritei seu nome e depois de muito tempo, quando consegui me colocar de pé, já era tarde. Sabia que ela não voltaria. Tive um acesso de fúria, passei pela cozinha, pela sala, quebrando os móveis e as louças. Acho que só não tive coragem de ir até o quarto. Ali era o nosso refúgio, o meu altar de sacrifícios. Em meio a essa fúria, que misturava meu sangue, meu suor e minha vida, senti que alguém entrava em casa e me tocava no ombro. Depois, nada mais me lembro.
Deitado na cama, encarando sobre a minha cabeça aquela rolha, lembrei do amigo João, o primeiro com quem me entendi na loja. Em todos esses meses, ele foi o único que não me virou as costas. Apenas deixou de me dizer que Jussara não prestava, mas continuava a me sussurrar que contasse com ele, quando eu viesse a precisar. E agora precisava, mas não tinha como lhe pedir ajuda. Não havia telefones no quarto, eu estava apenas com um pijama branco, sem celular, sem nada. Podia jurar que a mão que me tocara o ombro no dia anterior havia sido a dele. Provável. Ao sair da loja, ele se mostrara preocupado com o meu futuro. Fiquei horas encarando a rolha, imaginando se eu teria alguma forma de chegar até ela, até que vi uma agulha transpassá-la, e do pequeno furo cair um líquido viscoso, transparente, que ia pingando, gota a gota, no centro do quarto. Levantei-me, agitado, e gritei, pois se algo era introduzido naquela garrafa, era porque alguém estava do lado de fora dela. Gritei, gritei, esmurrei o vidro da janela, o vidro da porta, mas não percebia nenhum movimento. O fumê parecia escurecer ainda mais, enquanto o quarto parecia ficar cada vez mais branco. Esmurrei as paredes, desfiz o colchão, estraçalhei o travesseiro; lembrei de pegar as gavetas e as usei para esmurrar a porta, mas nenhum risco elas conseguiram fazer, e se desfizeram em minhas mãos, como se fossem feitas de papel. Os pingos que mal manchavam o chão começaram a criar uma poça, e eu fui me sentindo mais e mais sufocado, parecia que o ar ali rareava, e as paredes brancas, e a poça se tornando um pequeno rio, e as paredes começaram a se fechar, reduzindo o meu espaço, e as gotas pingando da agulha, e o chão se enchendo de líquido, subindo pelas minhas pernas, e as paredes diminuindo, e o líquido já na minha garganta, e eu submergindo...
Abri os olhos e não pude me mexer. As paredes ainda eram brancas. Mas podia vislumbrar um raio de sol que vinha da janela e iluminava meu amigo João, parado ao lado da minha cama, junto de um enfermeiro.
Deitado na cama, encarando sobre a minha cabeça aquela rolha, lembrei do amigo João, o primeiro com quem me entendi na loja. Em todos esses meses, ele foi o único que não me virou as costas. Apenas deixou de me dizer que Jussara não prestava, mas continuava a me sussurrar que contasse com ele, quando eu viesse a precisar. E agora precisava, mas não tinha como lhe pedir ajuda. Não havia telefones no quarto, eu estava apenas com um pijama branco, sem celular, sem nada. Podia jurar que a mão que me tocara o ombro no dia anterior havia sido a dele. Provável. Ao sair da loja, ele se mostrara preocupado com o meu futuro. Fiquei horas encarando a rolha, imaginando se eu teria alguma forma de chegar até ela, até que vi uma agulha transpassá-la, e do pequeno furo cair um líquido viscoso, transparente, que ia pingando, gota a gota, no centro do quarto. Levantei-me, agitado, e gritei, pois se algo era introduzido naquela garrafa, era porque alguém estava do lado de fora dela. Gritei, gritei, esmurrei o vidro da janela, o vidro da porta, mas não percebia nenhum movimento. O fumê parecia escurecer ainda mais, enquanto o quarto parecia ficar cada vez mais branco. Esmurrei as paredes, desfiz o colchão, estraçalhei o travesseiro; lembrei de pegar as gavetas e as usei para esmurrar a porta, mas nenhum risco elas conseguiram fazer, e se desfizeram em minhas mãos, como se fossem feitas de papel. Os pingos que mal manchavam o chão começaram a criar uma poça, e eu fui me sentindo mais e mais sufocado, parecia que o ar ali rareava, e as paredes brancas, e a poça se tornando um pequeno rio, e as paredes começaram a se fechar, reduzindo o meu espaço, e as gotas pingando da agulha, e o chão se enchendo de líquido, subindo pelas minhas pernas, e as paredes diminuindo, e o líquido já na minha garganta, e eu submergindo...
Abri os olhos e não pude me mexer. As paredes ainda eram brancas. Mas podia vislumbrar um raio de sol que vinha da janela e iluminava meu amigo João, parado ao lado da minha cama, junto de um enfermeiro.
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